Capítulo 4 - Entre pressão, depressão


Capítulo 4 - Entre pressão, depressão

Faz frio nessa manhã seca de Brasília; o vento gelado é de deixar a ponta do nariz dormente. A via W3 Sul está em pleno movimento, com muitos carros buzinando e querendo uma ultrapassagem, porém os semáforos insistem em apresentar sua luz vermelha, impedindo o desenvolvimento da via. Para complicar, ainda há muitas pessoas passando apressadas na faixa de pedestre - algumas com seus livros e outras com seu crachá já pendurado no pescoço.
Os ambulantes são os mais corajosos: além de enfrentar o frio daquela manhã, alguns com roupas muito singelas para a ocasião, tentam conter o vento que insistia em levantar o pano de suas bancas.
Cinco minutos. Esse foi o tempo que passou entre Pedro descer do ônibus e Keysha pegar uma condução para a casa de sua amiga. O rapaz estava pensativo e a garota de cabelos rosas, indiferente. Conversaram muito rapidamente, coisa que aliviou Pedro por um lado, mas pelo outro, o deixou com dúvidas.
-Então, ta bom. A gente se fala depois. – diz Pedro, lamentando por durar tão pouco aquele momento.
-Tchau. – fala Keysha, tendo aquela situação como qualquer outra em sua vida.


Enquanto isso, na clara, fria e vazia sala da faculdade, Sr.Pablo, tio de Pedro, esperava impaciente. Ao olhar o relógio, a impaciência aumentava:
-Nove horas! O que será que houve com Pedro? Será que ele se esqueceu?
Eis então que o rapaz surge, atordoado e ofegante, abrindo a porta:
-Desculpe, tio. O ônibus atrasou.
-Tudo bem. Estou de coordenação hoje e por isso não vai me atrapalhar. Sente-se aqui.
Nos próximos minutos que se sucederam, ao deliberar sobre “Efeito Halo”, o tio observou que Pedro estava longe. Parou, então, o assunto e se sentou na frente do rapaz. Pedro, vendo a situação, lançou seu olhar ao chão, como se sentisse culpa.
-Pedro, tá tudo legal contigo?
-Sim, tio, desculpe. Pode continuar.
-Não, não irei continuar. Quero saber o que está se passando nessa jovem cabeça. Você chegou atrasado, coisa que não costuma fazer. Está com problemas em casa?
-Não, na verdade conversei com um amigo hoje dentro do ônibus. Ele me contou algo e eu fiquei pensando nisso.
-Hum... e o que ele te contou?
-Ele sempre foi quieto, nunca foi de fazer farras ou chegar tarde em casa. Sempre quis ter um futuro grande, mas muita coisa vem acontecendo e ele está confuso...
-Hum, prossiga.
-Na 8ª série, ele se apaixonou por uma menina brilhante, inteligente... ela era a melhora da sala, muito direita...
-E...
-Após alguns anos eles se reencontraram. Ele continuou sendo uma pessoa estudiosa e esforçada. Porém, ela se tornou uma garota de baladas, de roupas negras e cabelos rosa.
-Pessoas mudam, Pedro. O que tem demais nisso?
-Tem que ele se guardou pra ela... Descobriu que a ama até hoje. Isso não é estranho para um homem?
-Eles já conversaram?
-Sim! Essa é a pior parte! Ela pediu para que, caso eles andem juntos, era pra ele fingir que não a conhecia anteriormente, porque ela não queria lembrar-se da época que era “a palha da turma”. Que horror! Ela era brilhante!
Sr. Pablo, percebendo a ira e a decepção no rosto do sobrinho, se levantou, subiu sua calça por cima da barriga avantajada, arrumou a camisa por dentro da calça, passou a mão nos poucos fios que restavam em sua cabeça descendo para o cavanhaque. Com passos curtos, deu a volta na mesa, foi até o sobrinho e colocou a mão em seu ombro.
-Pedro, seu amigo ama essa garota?
-Sim tio, não duvido disso! - disse o garoto com tristeza nos olhos, que miravam o chão.
-Se o seu amigo se guardou para uma mulher, ele é um homem especial. Acredito que saberá, como um homem inteligente e especial, o que fazer.
O garoto permaneceu em silêncio, enquanto o tio prosseguiu:
-E se essa moça não sabe o quanto esse rapaz é especial, outra moça irá achar e fazê-lo muito feliz.
Silêncio.
-Então é isso, filho. Vá pra casa descansar a cabeça. Não se preocupe que seu tio aqui ta tranqüilo, mas não quero te ver assim.
-Tá, tio. Me desculpe mesmo, não estou concentrado...
-Vá, filho. Fique bem.
Quando Pedro abria a porta para deixar a sala, seu tio, que arrumava os livros na mesa, sorriu ironicamente e disse:
-Mande lembranças ao seu amigo.
Pedro deu um sorriso triste, fez que sim com a cabeça e se retirou.


No fim da tarde, na famosa escola onde a professora Lídia trabalha, as coisas estavam se tornando piores a cada dia. Carolina, a aluna que esnobou Lídia, começava a despertar toda a arrogância da adolescência: parecia ser a dona do mundo, a que podia fazer tudo, comprar tudo, ter tudo... O chão era uma ofensa aos seus pés e ela somente se aproximava de seus “súditos” (entenda-se: colegas de classe) caso precisasse de algo.
Juntamente com esse despertar da puberdade, Carolina parecia não se cansar. Fazia piadas e jogava indiretas a todo momento. Lídia se martirizava cada vez que adentrava a sala de Carolina.
Finalmente, tocou o sinal de final do intervalo. Lídia arruma seus livros e se prepara para entrar na sala da oitava série. Antes de abrir a porta da sala, o coração da professora acelera, mas ela tenta se acalmar. Convence a si mesma a entrar com um sorriso no rosto.
-Bom dia... – fala Lídia ao entrar.
Nesse momento, a professora se surpreende: todos os alunos estavam com as cadeiras de costas para o quadro negro, em um protesto sem causa. Lídia olha aquilo e fica sem entender.
-Pessoal. Vou precisar que virem as carteiras para cá. Não sei que aula vocês tiveram anteriormente, mas agora preciso que olhem para o quadro negro.
Os alunos continuam com as carteiras viradas. Lídia não entende aquilo.
-Pessoal, por favor, a aula é aqui agora.
-A gente não está a fim de assistir sua aula. – fala Carolina.
-Se não virarem, eu vou... vou ter que... que chamar a direção da escola.
-Chama... qualquer coisa, a gente muda de escola.
A professora, com lágrimas nos olhos e sem acreditar no que estava acontecendo, pacientemente dá aula para todas aquelas costas que se apresentavam à sua frente, sem qualquer outra reação. Apenas as paredes brancas com alguns cartazes de trabalho a olhavam.
No término do dia, a professora passa pelos corredores da escola cabisbaixa, pensando no que houve, querendo apenas sair dali. Seus passos rápidos e seu semblante de preocupação denunciavam isso.
Então, eis que a diretora, com as chaves na mão fazendo ruído, surge em seu caminho. Seu semblante frio e calmo, combinando perfeitamente com sua roupa executiva e meia calça de cor mais clara que sua tonalidade de pele, interrompe sua “fuga discreta”.
-Lídia!
-Pois não, senhora diretora.
-Tudo bem?
-Está.
-Tenho notado você estranha ultimamente.
-São problemas pessoais, mas não os deixo interferir em meu trabalho.
-Que bom! Emprego está difícil hoje não é? Não podemos vacilar...
-É verdade. Bom, vou indo. Até amanhã.
-Até.
Ao ver a professora indo, a diretora diz para si mesma:
-Fraca!
No estacionamento dos professores, a professora entra em seu humilde carro e resolve colocar sua fita K7 que gravou com uma única música várias vezes. Ela tinha se encantado com aquele som, que dava uma sensação nostálgica e profunda. A melodia a remetia a um tempo que não havia vivido devido a sua idade, mas a agradava:
-Tenho que passar no mercado ainda, não tem carne em casa. - dizia aos prantos, parecendo ignorar o fato, não fossem as lágrimas.
Enquanto cantarola a saudosa música chorando, seu celular toca.
-Alô?
-Alô? Quem ta falando?
-Você liga no celular de uma pessoa e pergunta quem está falando?
-Me desculpa, é a Sra. Marlene?
-Não, não é.
-Ah, quem está falando?
-De novo? Não é a Marlene.
-Moça, você está chorando?Posso te ajudar em algo?
-Não. Obrigada pela preocupação... Não estou em um momento bom...
-Olha, se precisar, pode me ligar. Meu número você já tem.
-Tá, obrigada. Até mais...
Lídia desliga o telefone e fica contente por uma voz masculina e desconhecida ter mostrado preocupação com ela. Pela primeira vez no dia, não se sentiu sozinha. Pensando no que ainda tinha que fazer, a professora segue com seu carro pela avenida W3 norte, onde os semáforos insistem em apresentar a incômoda luz vermelha sempre que ela se aproxima. Em um desses semáforos, ela se lembrou da estranha ligação e deu um singelo sorriso. Começou a cantar sua música com mais vontade.
A professora segue pela Via W3 Norte e entra no Eixo Monumental. Ela segue a via até o fim para poder alcançar a pista da Estrutural, também chamada de Estrada Parque Ceilândia, para poder ir para a Ceilândia, cidade-satélite onde mora.
Lídia só queria esquecer aquilo. Adorava lecionar, fazia porque gostava, sentia prazer em seu trabalho, não fossem esses contratempos que a faziam rever conceitos. Afinal de contas, o que está acontecendo com o mundo? O que está acontecendo com as pessoas? Onde estão as coisas simples e verdadeiras da vida? Então era isso? Só dinheiro e poder? Os sonhos foram abafados e, hoje em dia, o único sonho é ter status?
Seus pensamento são interrompidos quando, passando pela avenida Hélio Prates e chegando na cidade satélite de Ceilândia, ela avista um mercado.
-A carne!


Algumas horas se passam e a noite surge em Brasília. Surge fria e com o céu estrelado, céu esse incomparável com qualquer outro lugar do Brasil. A noite transforma o polêmico Setor Comercial Sul em paraíso para das damas da noite e os que procuram sexo alternativo.
Dentro do fétido e escuro setor, onde há restos de frutas e embalagens deixadas pelos camelôs que ali permanecem durante o dia, Khrysthyanne Andrielly aguarda seus clientes em seu ponto e pensa no que houve naquela madrugada de sexta-feira para sábado da semana passada. A dama da noite caminha com seu rebolado exagerado, sapatos enormes de plataforma brilhantes e roxos, poucas roupas e muitos adereços. Sem nenhuma preocupação, ela pensa:
-Claro que aquela bicha jamais iria vir atrás de mim! Ia me matar? Pra esposa dela ver sua cara estampada nas páginas policiais? Ou dar um bofe-escândalo aqui, o que seria o fim dele?
A movimentação na beira da avenida ia ficando mais longe conforme a travesti adentrava o Setor. De repente, a escuridão e o silêncio são quebrados por passos que não são os seus. Khrysthyanne Andrielly para e observa ao redor, atenta.
Por trás de uma pilastra, uma silhueta se apresenta em contraste com os postes que iluminavam do outro lado dos prédios. Era Carla, a travesti do quepe de policial e seios de fora. Ela anda lentamente em direção a Khrysthyanne Andrielly, como se não tivesse pressa em chegar. Seu semblante é obscuro, independente da escuridão que ali se apresentava, o que faz Khrysthyanne temer por uns instantes, mas agir naturalmente:
-Que susto, bicha! Quase me transformei em purpurina agora!
Carla não diz nada e, ao parar de frente com ela, a surpreende com um tapa no rosto, derrubando-a. O barulho ecoa, repetindo várias vezes no local.
-Quer dizer que a viadinha sem classe anda pegando o ricaço do Audi, né?
Khrysthyanne, ainda no chão, olha pra Carla:
-Desculpa meu amor. Prometo que na próxima encarnação eu vou nascer menos gostosa. Pode ficar com o viadinho do Rody pra você!
Nessa hora, Carla tira um punhal da bolsa de couro. Seu semblante não dá a menor pista de medo ou receio do que planeja fazer. Ela está segura e irada:
-Então, vamos saber agora, sua vagabunda barata! O Rody é só meu!
Carla avança para cima de sua rival e Khrysthyanne, ainda no chão, fecha os olhos. Um forte de barulho de pancada ecoa pelo setor. Ao abrir os olhos, a travesti nota que Carla está no chão desmaiada. Ela olha para frente e se assusta: é Valdemar que estava ali com um pedaço de madeira na mão! O mesmo Valdemar que teve o seu Vectra roubado por Khrysthyanne e Rody!
A travesti se levanta rapidamente e recua. Seu olhar brilha e entrega um pouco de medo, mas ela prossegue e sua voz é firme:
-O que você quer aqui? Você nocauteou ela!
-Vocês deixaram o meu carro intacto atrás do Estádio Mane Garrincha. Contatei a polícia e eles encontraram tudo em seu devido lugar, fora os pneus que eu furei com tiros. Por que levaram o carro se não iriam roubar?
-Eu fiz isso só porque não queria estragar o ponto das bicha! Agora, me deixa em paz! O que cê ta fazendo aqui?
-Faltou uma coisa! Vim buscar meu dinheiro, sua bandida!
Em outra situação, Khrysthyanne Andrielly jamais devolveria a grana; ela não era dessas que cedia tão fácil. Por várias vezes passou por momentos críticos e sempre reverteu a situação para si, levando vantagem, mas ao ver Carla no chão desacordada, arruma os cabelos, tenta limpar a lama da roupa e dos joelhos, tira o dinheiro na bolsa e entregar o dinheiro a Valdemar.
-A desgraçada vai comer minha bunda com sucrilhos... – sussurra Khrysthyanne ao pensar no dinheiro que está devendo pra cafetina da região.
Valdemar, desconfiado, pega o dinheiro em silêncio e sai. Sua imagem desaparece no escuro por trás das pilastras.
Khrysthyanne Andrielly se sente derrotada e arrependida. A travesti segue de volta à claridade, para a beira da pista, onde as outras damas da noite esperam seus clientes. Ela passa a ouvir somente os passos que dá, agora mais lentamente. As coisas ali naquele ponto não poderiam mais ser como antes, mas, enquanto isso, ela empina o nariz e pensa nos programas que irá fazer. De repente, seus pensamentos são interrompidos quando ela avista uma estranha sombra atrás. Ao olhar e tentar identificar quem era dessa vez, seus olhos se aterrorizam... Sim, é a cafetina da região! Ela se apresenta com roupas curtas e amarelas, contrastando com sua pele negra, uma arma na mão e jeito de quem não está pra brincadeira:
-Por que a artista principal está fugindo se o show está apenas começando?
-Va... Va...Vanessa! – engasga Khrysthyanne Andrielly.

(continua no próximo final de semana!)

*Na foto, tio Pablo e Pedro.

->Música que a professora Lídia gravou inúmeras vezes em sua fita K7:


Guilherme Lamounier - Será que eu pus um grilo na sua cabeça?

Capítulo 3 - "Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira"



Capítulo 3 – “Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira”


Ainda era a mesma sexta-feira fria e deserta nas ruas de Brasília. O telefone toca na casa do senhor Francisco Marques, pai de Rody e morador do Lago Sul, um bairro nobre de Brasília. Era sua mãe, a dona Alicia Marques.
-Alô?
-Filho? Você tá bem?
-Quem tá falando? Mãe?
-Sou eu, sua mãe! Você tá bem?
-Estou, mãe! Por que a senhora está ligando a essa hora? Já é meia-noite!
-É que eu tive um pesadelo! Cadê o Rody?
-Mãe, ele tem uma vida independente! Nessas horas, deve estar dormindo tranqüilamente com a namorada!


Em outro canto da cidade, mais precisamente perto da Orla do Lago Paranoá, onde a noite é iluminada o suficiente para dar magia ao local, uma cena quente ali se apresenta: Khrysthyanne Andrielly, Rody e mais um desconhecido fazem um programa a três dentro de um Vectra. Aconteceu o seguinte: Rody e o outro homem, que se chama Valdemar, se interessaram simultaneamente pela travesti enquanto passavam pelo fétido Setor Comercial Sul à noite. Rody vinha no seu Audi e Valdemar vinha em seu Vectra. Ambos pararam Khrysthyanne e queriam sair com ela. A confusão só não foi maior porque a dama da noite aceitou sair com os dois, coisa que ela só topou fazer porque está sem grana e tem que quitar uma dívida com a cafetina da região. Para não haver confusão, todos seguiram dentro do Vectra de Valdemar. Rody deixou o seu Audi estacionado perto da guarita da polícia do Setor Comercial Sul, que fica perto dos bancos.
A noite era uma criança para os três. Rody e Valdemar se deliciavam com Khrysthyanne Andrielly. De repente, o celular de Valdemar toca. Era sua esposa. Ele então sai do carro com a camisa e os cabelos bagunçados e fala com sua esposa, que nem imagina a situação que se procede.
-Oi, amor. Estou com uns amigos...
Rody e Khrysthyanne sossegam um pouco. De repente, a travesti vê a carteira com cartões de crédito e dinheiro de Valdemar jogada em cima do painel do carro. Ela pega e abre. Rody nota aquilo:
-Quanta grana...
-É, eu vou logo pegar o dinheiro do programa, filho. Vou pegar e depois cobrar dele como se ele nunca tivesse me pagado!
-Cara, eu não resisto também. Tenho que pegar alguma coisa pra mim.
-Se liga, bicha. Você é cheia da grana! Daqui a pouco vai querer roubar o carro!
Rody olha para Khrysthyanne Andrielly e dá um sorriso.
Enquanto isso, Valdemar encerra a conversa com sua esposa:
-Tá bom! Tá bom! Não precisa reclamar! Já to ligando o carro! Quer ouvir o barulho? Quer ouvir?
Do lado de fora do carro, Valdemar segue para o seu veículo e nota Rody dando partida. Ele se surpreende e se assusta:
-Ei, espera!
Rody acelera o carro e começa a fugir. Khrysthyanne manda um beijo para seu cliente:
-Tchau, bilu! Um beijinho pra sua esposa!
Valdemar fica com cara de decepcionado e começa a chorar:
-Ai, meu Deus! Socorro! Socorro!
Ele começa a correr e, por sorte, um motoqueiro passa por ali perto.
-Eeei! Por favor, preciso de ajuda!


Enquanto isso, Khrysthyanne Andrielly e Rody riem à beça dentro do carro.
-Há, há, há, há... você viu como ficou a cara dele?
-Bicha, você é uma das minhas. Você não presta! Roubou o carro da maricona!
-Cara, tá demais, vou até acender um beck aqui!
-Cê tá dirigindo, viada! Cuidado para não bater o carro porque eu quero morrer velha e linda!
Rody não liga para o que Khrysthyanne falou e acende seu cigarro de maconha.
-Quer saber? Você é da hora. Eu deveria ter te observado antes.
-Estou encantada. – responde Khrysthyanne ironicamente e arrumando sua maquiagem com um kit que ela trouxe em sua bolsa.
-Quem sabe a gente não fica mais íntimo e não viaja junto?
-Cê tá louca? Tu não faz o meu tipo não, querida. Ainda vou arranjar um bofe lindo e ir pra Europa!
-Todas dizem o mesmo até experimentarem todo o meu charme...
-Prefiro que um raio caia nesse carro.
Nessa hora, uma bala atinge o retrovisor do Vectra no lado de Khrysthyanne.
-Aaaaaiii! Que isso?
Rody olha para trás e vê Valdemar pegando carona com um motoqueiro. Ele está armado.
-A bicha tá armada! Acelera essa droga!
Rody vai guiando o carro e alcança as superquadras de Brasília. Mais um tiro acerta o vidro traseiro do veículo.
-Aaaai! Socorrooo! – grita a travesti.
Valdemar mira bem o revólver e atira no pneu do carro. O Vectra começa a perder a velocidade e Rody fica desesperado. Valdemar e o motoqueiro alcançam o carro e ficam colados com a janela onde está Khrysthyanne Andrielly.
-Devolve o meu carro! – grita Valdemar.
-Ai! Faz alguma coisa! – se desespera Khrysthyanne.
-Vou fazer o quê? – fala Rody.
-Pelo jeito eu que vou ter que ser macho aqui! – fala a travesti.
Nesse momento, Valdemar tenta abrir a porta do lado do carona. Khrysthyanne Andrielly nota aquilo e tira o tamanco do seu pé. Ela começa a bater fortemente na mão de Valdemar. Ele acaba tendo um dedo quebrado. A travesti apela e lança seus dois tamancos. Na primeira tentativa, ela erra a cabeça do motoqueiro que dava carona para Valdemar. Na segunda, ela acerta a cabeça de Valdemar. Vendo que os dois na moto ainda os perseguiam, Khrysthyanne abre a porta do seu lado com força total e isso acaba derrubando a moto. Valdemar e o motoqueiro tombam na pista.
-Sua maluca! – fala Rody.
Khrysthyanne Andrielly e Rody respiram e sorriem aliviados. A travesti ainda dá dedo para Valdemar e some nas entrequadras de Brasília.


Nesse momento, na boate do Setor de Oficinas Sul, Keith desce as escadas da área vip e vai para a pista de dança. Ela tenta não perder Erick de vista e vai empurrando as pessoas no meio do caminho como se fosse a dona do pedaço. Keith avista o seu amigo e corre para lhe dar um abraço.
-E aí, seu doido! Quanto tempo!
-Você que sumiu, sua “vagaba”!
Keith olha para os lados e vê que mais pessoas acompanham Erick, dentre as quais estão duas garotas e um cara. Ela não cumprimenta os amigos e volta o seu olhar para os olhos de Erick.
-Você e seu amigo estão pegando essas duas piranhas aí, é?
-Não, ele é gay. Eu que estou pegando as duas.
-Há, há, há... fala sério! Venha que eu quero que você converse com uma amiga minha.
Keith sai puxando Erick e deixa os amigos dele sem graça. Ao tentar subir as escadas para a área vip, eles são barrados pelo segurança. Keith resolve fazer seu jogo de cintura:
-Olha, amigo, não tem problema nenhum ele subir com a gente porque a gente paga a entrada dele no final, tá? Anota aqui nesse cartão mal-feito que vocês dão na entrada da boate que o meu marido paga no final.
O segurança apenas se cala e os deixa passar. Keysha olha apreensiva para as escadas e vê Keith chegar com Erick. O rapaz toma um susto e fica sério quando vê a garota de cabelos rosa.
-É ela? – fala Erick um pouco desapontado.
-Sim! – fala Keith sorrindo.
Os dois chegam perto de Keysha e Keith tenta interceder por sua amiga:
-Pô, mó massa encontrar meus amigos aqui na festa! Ah, esse aqui é o Erick, Keysha!
-Eu já conheço ele, amiga. – fala Keysha, ao achar meio tosca aquela representação de Keith – Como vai, Erick?
-Beleza, e você? Está sempre aqui na boate.
-É. A galera sempre me convida pra vir e eu gosto do som. Me amarro em trance.
Keith olha que a conversa começa a fluir e fala:
-Ai, gente, eu deixei o Naldinho ali sozinho, tadinho... Vou fazer um pouquinho de companhia a ele. Daqui a pouco eu volto, ta?
Keith se distancia e Keysha volta o seu olhar para Erick.
-Você tá sozinho?
-Não, não. Eu vim com meus amigos.
Os dois se calam um pouco e ficam escutando a música da boate. Keysha se sente um pouco tímida e seus pensamentos a traem. Ela se lembra de que ser tímida não é uma atitude de uma garota como ela. Ela simplesmente veio para “causar”.
-Você... tá ficando com alguém? – pergunta a garota.
Erick ainda dança um pouco e vira o seu olhar para Keysha.
-Bom... acho que fiquei com umas cinco desde que estacionei o carro perto da boate...
O sorriso de Keysha murcha nessa hora.
Keith e Reginaldo chegam perto dos dois.
-Gente, eu e o Naldo vamos “causar” um pouco lá na pista, viu? Podem aproveitar o open bar sem problemas. O Naldo paga a entrada do Erick no final. Kisses!
Keysha olha os dois descerem as escadas da área vip e fica um pouco confusa e desapontada. Mas ela tinha que passar por cima de si mesma e demonstrar que não estava nem aí para o que Erick acabou de dizer.
A garota de cabelo rosa pega um copo de vodca no open bar e começa a dançar. Erick a observa e chega perto para cochichar em seu ouvido:
-Isso não significa que eu não possa ficar com você...
O coração de Keysha palpita e ela esquece a mágoa que teve ao ouvir que aquele cara interessante tinha ficado com cinco garotas. Os dois então se beijam.


O final de semana parece começar a passar rapidamente. É manhã de sábado e Pedro Henrique toma café junto com seus pais e sua irmã caçula. Eles moram em um apartamento nas quadras CNB, em Taguatinga Norte, cidade-satélite de Brasília. A morada não é muito grande, mas dá para eles viverem com comodidade e sossego. A mesa da sala de jantar estava farta, pois havia uvas, mamão, biscoitos, pão de queijo, pão francês, pão torrado, margarina, presunto, queijo, suco de caju, café e leite. Pedro Henrique saboreava um pão torrado enquanto observava seus pais conversarem. Naquela casa, era proibido ligar a televisão quando a família se reunia para comer. Todos deveriam apenas conversar.
Os pais de Pedro são donos de uma lanchonete perto do apartamento onde moram. A loja fica perpendicular à movimentada avenida Comercial Norte. Pedro passa margarina em seu pão torrado e comenta:
-Puxa... ando estressado ultimamente. Preciso cuidar um pouco de mim.
A mãe de Pedro termina de tomar café e fala:
-São seus estudos, filho. Dedique-se mais um pouco. As férias de julho já estão chegando.
-Não é disso que falo, mamãe. A minha vida tem se resumido a ajudá-los a gerenciar a lanchonete, a ir para a faculdade à noite e a fazer trabalhos voluntários no orfanato nos finais de semana. Não estou tendo tempo pra mim.
-Esses sacrifícios são necessários, Pedro. Você não pode parar de estudar. Tem que cuidar do seu futuro. – fala o pai de Pedro.
-Eu sei... É que eu... é que eu... queria sair mais com os amigos. Queria me divertir como eles se divertem.
Os pais de Pedro se olham e continuam a escutar seu filho:
-Alguns amigos de faculdade saem de vez em quando. Outro dia eles me chamaram para ir pra boate.
-Esses seus amigos devem ser uns desinteressados! Devem matar aula para ir beber ou fazer coisas erradas! Você tem que se afastar deles! – fala sua mãe.
Pedro se sente um pouco triste e confuso por dentro. Ele não pode desagradar seus pais e muito menos ir contra a opinião deles. Sua felicidade é abafada pelo o que determinam para ele, inclusive com horários para cumprir. O rapaz de 24 anos deixa a mesa meio entristecido. Seu pai observa aquilo e sua mãe comenta:
-Não foi uma boa ideia o Pedro cursar uma faculdade lá no Plano Piloto. Ele poderia transferir aqui pra Taguatinga. Não tem necessidade de perder tempo se deslocando pra lá.
-Ah, querida, eu achei legal ele estudar lá onde o meu irmão dá aulas. Os dois vão se encontrar segunda-feira de manhã para o Pedro pegar umas aulinhas extras de Cálculo I.
A irmãzinha de Pedro apenas observa um pouco da conversa e depois se retira.


Pedro se tranca em seu quarto e resolve passar o sábado e domingo lá dentro. As horas intermináveis dentro do cômodo só serviram para que ele ficasse o tempo todo no MSN e baixando seriados na internet... O rapaz não se interessou em fazer seu trabalho voluntário no orfanato nesse final de semana.
Finalmente a segunda-feira chega. Pedro se levanta e se arruma depressa, pois está atrasado. Os minutos passam e até o elevador do prédio parece demorar. Pedro sai do condomínio e corre para pegar o lotado ônibus via W3 Sul na avenida Comercial Norte.
O ônibus segue em um trânsito lento pela Comercial Norte e pelo centro de Taguatinga. Como é o primeiro dia da semana, o veículo também pega um engarrafamento na EPTG, via que liga Taguatinga ao Plano Piloto – Brasília, e aquilo deixa Pedro angustiado. Ele marcou de se encontrar com o seu tio na faculdade por volta das oito horas. Já eram quinze para as oito! A viagem toda parecia interminável: SIG, Eixo Monumental, Torre de TV, início da W3 Sul, shopping Pátio Brasil...
Pedro já comemorava quando finalmente chegou na parada para seguir para a faculdade. Ao descer do ônibus, ele olha para os lados e vai seguindo o seu caminho. De repente, algo congela a sua alma... coincidência do destino ou não, Keysha estava sentada no banco da parada de concreto. Pedro fica sem respiração e seu coração palpita. Ele centra o seu olhar no belo rosto da garota. Keysha, estando distraída, retoma a sua atenção e vê Pedro. Os dois cruzam seus olhares, embora não estejam sentindo a mesma coisa. Pedro só sentia emoção e arrepio; Keysha parecia indiferente e recuada. Ela então se lembra daquele dia no carro e, para a imensa alegria de Pedro, fala:
-Oi.
Pedro solta o ar de emoção e, com um sorriso, responde:
-Oi...


(Continua no próximo final de semana!)

*Na foto, Rody e Khrysthyanne Andrielly.

**Música que Keysha e Erick escutaram pouco antes de se beijarem:

R.I.O - Shine On - R.I.O - Shine On

Capítulo 2 - Sintonia


Capítulo 2 – Sintonia

Naquela noite fria, enquanto alguns estudantes se apressavam pra entrar e outros para irem embora, havia muito movimento na entrada da faculdade de Pedro, que se localizava em uma superquadra da asa sul.
Pedro ainda olhava surpreso para dentro do carro. Nathan começa a empurrar o seu amigo para perto.
-Hum, quer que eu te apresente, né?
-Não! Não! Eu conheço ela.
-Conhece? Então por que não vai lá falar com ela?
Pedro tenta resistir, mas desiste quando Keysha os avista. Os dois chegam perto do carro e Nathan cumprimenta a sua galera. Ele apresenta Pedro para todos. Keysha parece conhece-lo de algum lugar, mas mesmo assim fica indiferente. Pedro fica um pouco sem graça pela indiferença e sente um aperto no coração. Ao voltar de seus pensamentos distantes, ele nota que Nathan o chama.
-Hã? Falou comigo?
-Sim, cara! Tá viajando? To perguntando se você quer ir pra boate com a gente.
-Não, obrigado. O professor já deve ter retornado. Tenho que voltar pra sala! Bom divertimento a todos! – fala Pedro ao disfarçar e olhar o seu celular.
Em seguida, Pedro dá as costas e volta correndo para dentro da faculdade. Seus passos eram longos e sua vontade era de sair logo da vista de Keysha. Seu coração o culpava por ele não ter aproveitado mais aquele momento...

Nathan entra no carro e comenta:
-Ah, meio nerd o meu amigo, mas é gente fina.
-Percebe-se... Jeito comportado... Eu me amarro mais em gente de atitude... Detesto o padrão das pessoas. – fala uma outra garota que estava no carro.
Keysha, que estava no banco de trás do carro, fica indiferente ao assunto e dá um espirro. Nathan observa aquilo e comenta:
-Ah, ele disse que te conhece, Keysha.
-Sério?
-É, mas não sei se ele lembra direito de onde te conheceu. Ficou um tempo paradão...
-Também tive essa impressão...
Nessa hora, o amigo que estava com eles resolve interromper a conversa:
-Chega de papo-furado vocês! Tenho uma coisa aqui muito massa...
E dentro do automóvel, em um estacionamento pouco iluminado devido à quantidade de verde que ali havia, Keysha observa, sem entusiasmo, o pó branco de delírio. Como um relâmpago, uma forte dor de cabeça a atinge. Olhando para seus amigos partilhando o pó, a jovem, sem graça, decide também deixar a realidade e, com um charme petulante e ofensivo, e não decepciona os amigos.
Os amigos de Keysha seguem então com o carro pelas quadras 900 da Asa Sul e procuram a entrada mais próxima para o Parque da Cidade. O vento gelado e seco da noite de Brasília bate em seu rosto durante o avanço da velocidade do veículo. Keysha reflete, não com tanta sobriedade agora. As fortes luzes que passavam como um flash a confundiam e seu pensamento vagava entre presente e futuro enquanto a noite solitária continuava lá fora. Ao adentrar o Parque, com suas vistosas árvores e com pouca movimentação, eles seguem para uma parte mais escura, um lugar abandonado onde as pessoas da noite se encontram para uma distração de seus dias, de suas vidas reais. Eles estacionam o carro em um lugar perto do antigo pedalinho, mas um pouco mais distante dos outros carros para que juntos possam delirar mais calmamente.


Enquanto isso, Jorge está fazendo hora-extra no banco público onde trabalha. Ele está ansioso e nervoso já que não soube dizer “não” ao seu chefe. Jorge nunca deveu horas para a empresa onde trabalha, mas de vez em quando, contra a sua vontade, fica até mais tarde para agradar às outras pessoas e fazer o serviço que elas deixaram incompleto.
A ansiedade de Jorge é tanta que ele decide acender um cigarro próximo a janela. O barulho e a temperatura do ar condicionado o incomodam. Com o corpo rente a parede a perna esquerda cruzada, lentamente Jorge espalha a fumaça da sua primeira tragada no ar e se distrai ao ver aquela fumaça fluir junto com a brisa e a luminosidade de Brasília. Mais relaxado, ele coloca os braços na janela e se inclina para ver os prédios do Setor Bancário Sul. O analista pleno acha toda aquela vista linda e solta um breve sorriso para a bela noite da Capital.
Jorge termina de fumar o cigarro e volta para o seu computador para fazer uma última listagem de clientes. Para esses clientes será oferecido um cartão internacional com vantagens. Jorge analisa a poupança de cada pessoa e monta uma lista. Faltam 5 minutos para ele ir embora e sua lista parou na letra R. Rodolfo Marques é o nome... Conta-poupança: vinte e cinco mil reais...
Jorge olha o nome e anota a quantia da poupança. Pelo seu nervosismo, em vez de ele clicar no botão “próximo” para seguir para a próxima pessoa, ele clica em “atualizar”. Algo então o surpreende... Rodolfo Marques... um milhão de reais! Jorge acha aquilo estranho e aperta o botão “atualizar” novamente. Confirmado: um milhão de reais... Mas onde ele anotou vinte e cinco mil reais? O bancário clica em “voltar” e vê o nome anterior: Rodolfo Lucas... oito mil reais... O celular de Jorge, quebrando o silêncio da sala vazia, desperta ao marcar 21 horas. O bancário começa a se arrumar para ir embora e guarda o fato para verificar posteriormente.


A noite avança e a professora Lídia para um pouco em um badalado bar na 109 sul. Ela estava precisando relaxar depois de um dia tenso dando aulas em um colégio particular na Asa Norte. No vistoso e bem freqüentado bar, a professora tenta esquecer como foi esse dia. A lembrança ainda está forte em sua mente...
Lídia estava dando aulas de português e explicando sobre orações subordinadas adverbiais. Era a última aula do dia no turno vespertino da 8ª série. De repente, o celular de uma aluna toca e faz um barulho tremendo ao emitir uma música de funk. A professora apenas olha séria e a aluna desconfia. Lídia tenta, em vão, se concentrar na aula e a aluna começa a falar ao celular e rir. Alguns alunos conversam baixinho, mas a voz da aluna é que se sobressai. Lídia resolve chamar a atenção da aluna:
-Carolina, você está atrapalhando a minha aula. Desliga esse celular, por gentileza.
Carolina fica sem graça e os alunos começam a caçoar dela. A aluna se irrita e responde a professora:
-Oxi, professora. Não reclama comigo porque o meu pai é quem paga o seu salário...
Ao ouvir aquilo, Lídia fica sem reação. A sala de aula, cheia e clara, agora some diante de seus olhos. Segundos depois, ela começa a se tremer e seus olhos enchem de lágrimas. O sinal bate e os alunos se arrumam feito loucos para ir embora. Lídia apaga o quadro lentamente e fica pensativa...
Após essa lembrança vir à tona, a professora olha para a lua e resolve sair do bar. Ao notar a professora saindo, o garçom chama sua atenção do balcão:
-Ei, moça! A senhora não pagou a conta!
Lídia olha para o garçom e em seguida nota todos os clientes do bar olhando para ela. A professora dá um sorriso sem graça e volta para pagar a conta. Ela abre a bolsa e não encontra dinheiro. Então, tira um cartão para pagar. Após algumas tentativas frustradas de tentar pagar a conta na função débito, o bar aceita que os nove reais gastos de cerveja sejam pagos na função crédito...
Lídia segue para o seu humilde carro e pega o trânsito no Eixão Sul. Sua casa ainda está longe, pois ela mora na Ceilândia.


Após cruzar a extensa e plana via EPIA, depois de sair do setor de motéis, Keith segue com o seu namorado, um homem de 45 anos de idade, para a boate no afamado e escondido setor de oficinas sul. A garota tem apenas 23 anos de idade e já fez muitas loucuras em sua vida. Também pudera! Sua estrutura familiar não é a das melhores, pois a sua mãe encontra-se internada em um hospício e ela não sabe do paradeiro de seu pai. Keith foi criada sob os olhares desatentos de sua avó materna e se entregou ao mundo desde pequena. Seu namorado é um rico fazendeiro de São Paulo e casado, mas vem aos finais de semana para Brasília se encontrar com a ninfeta.
Os dois seguem na BMW do coroa e passam pelas ruas mal iluminadas do setor de oficinas até chegar à boate. A primeira impressão que se tem é que o lugar é deserto à noite, mas à medida que se avança, nota-se muitos carros estacionados perto das boates. Esses lugares de dança ficam mais para dentro do escuro setor, com todas as lojas fechadas devido ao horário.
Keith e o coroa chegam e estacionam o carro. Keith já ia sair da BMW quando o coroa fala:
-Amor, tenho uma surpresinha pra você.
-O que foi agora, Naldo?
-Eu comprei uma sandália pra você.
-Nossa... que linda! Dá um beijinho...
Keith dá um selinho em Reginaldo e calça suas novas sandálias.
-Ai, adorei!
Os dois descem do carro e a garota joga suas antigas sandálias perto de uma árvore, desprezando-as, apesar de serem semi-novas.
A fila para entrar na boate não estava muito longa e logo Keith e Reginaldo puderam entrar. O coroa paga a entrada mais cara que dá direito a open bar. Keith fica abraçadinha com ele e aos mimos, mas lá no fundo, aquilo é só um momento passageiro, não é algo que a completa. Ela só aproveita aquela situação porque algo a completa momentaneamente: dinheiro.
Os dois finalmente entram na boate. As luzes de néon dançam pelo lugar e muitas pessoas exibem corpos sarados e suados. Muitos se entregam aos delírios da bebida e dançam loucamente. Outras pessoas ficam em pontos estratégicos da boate esperando serem convidadas para um programa fora dali. Novatos vão em grupos e ficam observando os outros se divertirem e também na esperança de conseguirem beijar alguém. Há também a dark room, uma sala onde tudo é escuridão e somente o desejo impera.
Keith e Reginaldo sobem as escadarias e vão para a área Vip da boate. Lá há um bar a disposição deles e muitas luzes enfeitando o cenário e desenhando a forma de um coqueiro. A luz azul contrastada com o verde florescente dá um tom surreal ao lugar. De repente, a música para e um grande barulho surge. As pessoas olham para o alto e seus olhos arregalam quando o teto da boate começa a abrir. Todos vão ao delírio e gritam muito. O DJ, que fica perto do palco, coloca um trance para as pessoas balançarem o esqueleto.
-Nossa, to adorando, amor!
-Eu só quero que você se divirta, meu brotinho! – fala Reginaldo ao pegar no queixo de Keith.
Os dois então pedem um copo de caipirosca e começam a se deliciar. De repente, Keith olha para o lado e vê um rosto conhecido: aqueles cabelos rosas inconfundíveis... era Keysha!
-Keysha!
Keith se apressa para falar com sua amiga. Keysha olha para o lado e se surpreende:
-Keith! Que massa você aqui!
As duas garotas se abraçam.
-O que cê ta fazendo aqui, piriguete? – pergunta Keysha.
-Ah, vim com o meu coroa ali... Fala como você ta? Quanto tempo!
-Eu só to curtindo mesmo. Agitando aí na night!
-Ah, ah, ah... você não mudou nada. Tá namorando?
-Bom... não...
Nesse momento, Keysha olha para baixo e nota que Erick e seus amigos chegaram na boate. Eles estão no meio da pista de dança. Keith observa o olhar de Keysha e também avista Erick.
-Ei, aquele ali não é o Erick?
-Você conhece ele?!
-Sim, a gente fumava junto... Não me diga que você tá a fim dele?
-Hã? O quê? Mas eu...
-Há, há, há... ta a fim dele! Viu como eu descubro as coisas no ar?
-Peraí, Keith...
-Eu vou lá falar com ele!
-Não! Não! Espera, Keith!
Keysha tenta impedir sua amiga, mas Keith corre para falar com Erick...


Enquanto isso, depois de ter voltado pra casa e ter tomado banho, Pedro se deita, mas fica pensativo. O rapaz mantém a luz do abajur acesa e nota sua estante de livros. Há vários livros do ensino fundamental e isso o remete ao passado:
-Keysha... a garota por quem eu era apaixonado na 8ª série...


(continua na próxima semana!)


*Na foto, Keysha e Pedro. Ao fundo, o centro de Brasília.

**Clique na caixa de música para escutar o que rolava no som do carro enquanto eles iam para o Parque da Cidade.

Legião urbana - Tempo perdido

Capítulo 1 - Keysha



Capitulo 1 - Keysha


A batida era bacana; o clima underground a atraía... De tantas vezes que fora ao lugar se tornara conhecida: era Keysha, a hairpink. Seus cabelos rosas chamavam a atenção e muitos a admiravam, mas tudo o que ela queria era estar em outro lugar, longe de tudo aquilo que naquele momento era superficial. Todas aquelas luzes, aquelas pessoas, aquele ambiente escuro e todos aqueles momentos em que passara até hoje transformaram a moça de cabelos morenos chamada Keila em “Keysha”.
-Preciso sair daqui! – sussurrava Keysha no banheiro da boate.
E após cheirar a quinta carreira da noite, entre lágrimas e estando ofegante, se via presa mais uma vez naquele mundo. Ela então sai daquele lugar mal cheiroso e sorri ao encontrar suas amigas de baladas que a esperavam no meio da muvuca.
-Tá tudo bem, Keysha?
-Tá sim, eu to sempre bem! – fala Keysha ao puxar o ar com mais força por causa dos restígios de pó que ainda havia em suas narinas.
Seguiram de volta à pista, onde todos dançavam incessantemente. Keysha via tantos rostos e olhava para suas supostas amigas só para se sentir segura. Em seguida voltava os olhos para a multidão e pensava consigo mesmo:
-Não, ele não vem hoje...
Eis que surge na multidão Rody, com um sorriso no rosto. Ele avista Keysha e a abraça.
-Cadê o Erick? – pergunta Keysha.
-Ele tava agorinha com a gente, tava rolando uns pegas na 408 Norte. Claro que eu alucinei!
-Mas será que ele vem?
-Keysha, ele sempre vem.
-Ai, meu Deus!
Keysha olhou triste para as luzes que dançavam na boate e seguiu de volta para o banheiro.
-Tá tudo bem! Tá tudo bem! - Repetia ela diante do espelho.- Dessa vez vai dar certo.
Ao voltar, Erick já se encontrava na pista, dançando e conversando com uma garota, enquanto Rody pedia uma bebida. Keysha então se concentra e resolve encarnar uma personagem, afinal, o seu jeito deveria ser o mais ousado possível. Ela não se sentiria bem se fosse simples demais. Iria parecer caretona. A garota pega uma bebida e chega perto de seus amigos e de Erick.
-Oi, Erick! Eu atrapalho alguma coisa? – pergunta Keysha.
A garota, que estava ao lado de Erick, olha Keysha da cabeça aos pés com um certo desprezo e vira a cara.
-Não, não, de maneira alguma...você tá bem?
-Sim, tá tudo bem sim, e com você?
-Também...a noite foi longa, estávamos na 408 Norte.
A garota que estava com Erick chama a atenção dele e lhe entrega um celular. Erick pega o celular e vai para a área de fumantes da boate sem ao menos se despedir de Keysha. A garota fica sem graça, mas precisava elevar sua autoestima. Ela não poderia se rebaixar perante uma situação daquela.
Naquela hora, a lua brilhou através do vidro no teto da boate e o DJ colocou a música preferida de Keysha. A garota do cabelo rosa começa a dançar loucamente e começa a beber incontáveis copos de vodca. Muitos homens cercam Keysha e a garota dança alucinada. Minutos depois, o teto da boate começa a girar e Keysha desmaia.


.....


O dia amanhece e Keysha começa logo a acordar. Ela se vê deitada em um sofá de uma casa estranha. Aquilo ali não era a casa de seus pais. De repente uma fumaça vem em sua cara e a garota se levanta rapidamente.
-Cof! Cof!
-Relaxa, guria! To só na manha...
Keysha abre bem os olhos e vê Rody em sua frente. Logo, ela conclui que está em seu apartamento. O rapaz descaradamente fumava maconha perto da janela.
-Como é que eu vim parar aqui?
-Você alucinou. Bebeu e cheirou tanto que desmaiou lá na boate. Numa hora dessas, tu morre, guria!
-Valeu pela praga, Rody...
Keysha se levanta e se olha no espelho. Seus olhos estão bem fundos e seu cabelo desarrumado. A garota não dá a mínima e se prepara para ir embora daquele apartamento.
-Ei, onde você vai, Keysha?
Keysha não olha para trás e apenas segue o seu rumo saindo do apartamento de Rody.
Faz frio naquela manhã em Brasília. Keysha tenta se aquecer e se sente como um cão abandonado. Até os mendigos na rua pareciam estar numa situação melhor do que a dela. A garota pensa em Erick e se sente o pior ser do mundo.


Rodolfo Marques, mais conhecido como Rody, mora sozinho em um apartamento na 210 norte. Sua família é rica e seu pai é ministro. Ele nunca precisou trabalhar na vida e apenas curte a noite de Brasília como bem entende.
Rody vai até a casa de sua namorada na Asa Sul. Ele passa a tarde toda lá sem se preocupar com a vida e apenas escuta o que sua namorada tem a dizer. Rody não costuma a interagir muito com assuntos importantes que a sua namorada fala. Quando ela pede uma opinião dele, ele apenas disfarça e dá um beijo demorado nela.
A noite cai. Rody se despede de sua namorada e promete visita-la amanhã. O rapaz entra em seu carro e segue da Asa Sul para a Asa Norte. De repente, no meio do caminho, o rapaz se sente atraído e tentado a dar uma passadinha no Setor Comercial Sul. O que o atraía ali eram as damas da noite. Mas não eram simplesmente damas... São os personagens das esquinas... Se disfarçam de mulher e oferecem aquilo que um homem muitas vezes reprimido procura...
Rody vai andando devagar com o seu carro e observando todos os movimentos das travestis. Uma especial chama a sua atenção: vestida com quepe de policial, com uma jaqueta de couro e os seios à mostra... O rapaz fica louco e para o carro. A travesti entende aquilo como um sinal verde...
-Oi, chuchuzinho... – fala a travesti.
-Oi, boneca... Entra aí.
A travesti entra no carro e os dois seguem sem rumo pela noite.


A alguns metros dali, Khrysthyanne Andrielly observa Rody levar a sua colega de profissão para um programa. Ela então comenta com uma outra colega ali perto:
-Você viu a maricona que a Carla pegou?
-Eu vi, bicha. Aquele ali sempre ta marcando ponto aqui.
-Você já saiu com ele?
-Ainda não. Mas as bicha fala que o pai dele é montado na grana.
-Hum... boto fé. Será que a Carla vai dar o bote na maricona? A Carla costuma a assaltar...
-Sei lá. Ela só não pode queimar o nosso filme, senão daqui a pouco os home vão ta tudo revistando a gente e levando a gente presa.
-É...
As duas travestis continuam em seu ponto esperando algum cliente surgir. Khrysthyanne Andrielly lembra do dinheiro que está devendo para a cafetina da região e já pensa em assaltar algum cliente seu...


Chega sexta-feira à noite. Pedro Henrique é só um estudante de um curso de administração numa faculdade na Asa Sul. O seu sonho é crescer na vida, ter um bom carro, uma boa casa e passar em um concurso público. Ele é um rapaz de 24 anos comportado e meio careta para a sociedade, pois gosta de ser coerente e responsável.
Já são quase 21 horas e o professor de Pedro manda seus alunos para o intervalo. Um colega de Pedro chamado Nathan o acompanha e tenta persuadi-lo:
-Vamos, cara! Vai ser massa!
-Sem essa, Nathan. Eu vou ficar até o final. A matéria é importante e não dá pra ficar matando aula.
-Po, Pedro. Deixa de ser tão caretão ao menos uma vez na vida. Não pode matar aula uma só vez e ir pra boate?
-Pra você não ficar triste, eu te acompanho até o portão.
-Vamos logo então que a galera deve estar me esperando.
Pedro e Nathan seguem para o portão da faculdade. Nathan encontra seus amigos em um carro estacionado em frente à faculdade. Quando se aproximam, Pedro olha bem para o carro e se surpreende. Nathan olha para a expressão de espanto de seu colega e pergunta:
-O que foi, Pedro? Vai me dizer que mudou de ideia?
-Nathan... como é o nome daquela garota que está ali dentro do carro?
-Qual?
-A de cabelo rosa...
-Ah, o nome dela é Keysha...
-Keysha... - sussurra Pedro ao olhar Keysha no banco de trás do carro mascando chiclete e rindo.


(Continua no próximo capítulo, que será lançado na próxima semana! Aguardem!)


*Música que a Keysha escutou na boate (clique para escutar):


Moony - I Don't know why

Abertura



MÚSICA URBANA 2
Legião Urbana
Composição: Renato Russo

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã -
É só música urbana.

Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repertir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.

O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.
E a matilha de crianças sujas no meio da rua -
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.

Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.

E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Yeah, Música urbana.
Oh Ohoo, Música urbana.


*Créditos: http://www.youtube.com/watch?v=PJhu0GaU9Hc