Capítulo 4 - Entre pressão, depressão


Capítulo 4 - Entre pressão, depressão

Faz frio nessa manhã seca de Brasília; o vento gelado é de deixar a ponta do nariz dormente. A via W3 Sul está em pleno movimento, com muitos carros buzinando e querendo uma ultrapassagem, porém os semáforos insistem em apresentar sua luz vermelha, impedindo o desenvolvimento da via. Para complicar, ainda há muitas pessoas passando apressadas na faixa de pedestre - algumas com seus livros e outras com seu crachá já pendurado no pescoço.
Os ambulantes são os mais corajosos: além de enfrentar o frio daquela manhã, alguns com roupas muito singelas para a ocasião, tentam conter o vento que insistia em levantar o pano de suas bancas.
Cinco minutos. Esse foi o tempo que passou entre Pedro descer do ônibus e Keysha pegar uma condução para a casa de sua amiga. O rapaz estava pensativo e a garota de cabelos rosas, indiferente. Conversaram muito rapidamente, coisa que aliviou Pedro por um lado, mas pelo outro, o deixou com dúvidas.
-Então, ta bom. A gente se fala depois. – diz Pedro, lamentando por durar tão pouco aquele momento.
-Tchau. – fala Keysha, tendo aquela situação como qualquer outra em sua vida.


Enquanto isso, na clara, fria e vazia sala da faculdade, Sr.Pablo, tio de Pedro, esperava impaciente. Ao olhar o relógio, a impaciência aumentava:
-Nove horas! O que será que houve com Pedro? Será que ele se esqueceu?
Eis então que o rapaz surge, atordoado e ofegante, abrindo a porta:
-Desculpe, tio. O ônibus atrasou.
-Tudo bem. Estou de coordenação hoje e por isso não vai me atrapalhar. Sente-se aqui.
Nos próximos minutos que se sucederam, ao deliberar sobre “Efeito Halo”, o tio observou que Pedro estava longe. Parou, então, o assunto e se sentou na frente do rapaz. Pedro, vendo a situação, lançou seu olhar ao chão, como se sentisse culpa.
-Pedro, tá tudo legal contigo?
-Sim, tio, desculpe. Pode continuar.
-Não, não irei continuar. Quero saber o que está se passando nessa jovem cabeça. Você chegou atrasado, coisa que não costuma fazer. Está com problemas em casa?
-Não, na verdade conversei com um amigo hoje dentro do ônibus. Ele me contou algo e eu fiquei pensando nisso.
-Hum... e o que ele te contou?
-Ele sempre foi quieto, nunca foi de fazer farras ou chegar tarde em casa. Sempre quis ter um futuro grande, mas muita coisa vem acontecendo e ele está confuso...
-Hum, prossiga.
-Na 8ª série, ele se apaixonou por uma menina brilhante, inteligente... ela era a melhora da sala, muito direita...
-E...
-Após alguns anos eles se reencontraram. Ele continuou sendo uma pessoa estudiosa e esforçada. Porém, ela se tornou uma garota de baladas, de roupas negras e cabelos rosa.
-Pessoas mudam, Pedro. O que tem demais nisso?
-Tem que ele se guardou pra ela... Descobriu que a ama até hoje. Isso não é estranho para um homem?
-Eles já conversaram?
-Sim! Essa é a pior parte! Ela pediu para que, caso eles andem juntos, era pra ele fingir que não a conhecia anteriormente, porque ela não queria lembrar-se da época que era “a palha da turma”. Que horror! Ela era brilhante!
Sr. Pablo, percebendo a ira e a decepção no rosto do sobrinho, se levantou, subiu sua calça por cima da barriga avantajada, arrumou a camisa por dentro da calça, passou a mão nos poucos fios que restavam em sua cabeça descendo para o cavanhaque. Com passos curtos, deu a volta na mesa, foi até o sobrinho e colocou a mão em seu ombro.
-Pedro, seu amigo ama essa garota?
-Sim tio, não duvido disso! - disse o garoto com tristeza nos olhos, que miravam o chão.
-Se o seu amigo se guardou para uma mulher, ele é um homem especial. Acredito que saberá, como um homem inteligente e especial, o que fazer.
O garoto permaneceu em silêncio, enquanto o tio prosseguiu:
-E se essa moça não sabe o quanto esse rapaz é especial, outra moça irá achar e fazê-lo muito feliz.
Silêncio.
-Então é isso, filho. Vá pra casa descansar a cabeça. Não se preocupe que seu tio aqui ta tranqüilo, mas não quero te ver assim.
-Tá, tio. Me desculpe mesmo, não estou concentrado...
-Vá, filho. Fique bem.
Quando Pedro abria a porta para deixar a sala, seu tio, que arrumava os livros na mesa, sorriu ironicamente e disse:
-Mande lembranças ao seu amigo.
Pedro deu um sorriso triste, fez que sim com a cabeça e se retirou.


No fim da tarde, na famosa escola onde a professora Lídia trabalha, as coisas estavam se tornando piores a cada dia. Carolina, a aluna que esnobou Lídia, começava a despertar toda a arrogância da adolescência: parecia ser a dona do mundo, a que podia fazer tudo, comprar tudo, ter tudo... O chão era uma ofensa aos seus pés e ela somente se aproximava de seus “súditos” (entenda-se: colegas de classe) caso precisasse de algo.
Juntamente com esse despertar da puberdade, Carolina parecia não se cansar. Fazia piadas e jogava indiretas a todo momento. Lídia se martirizava cada vez que adentrava a sala de Carolina.
Finalmente, tocou o sinal de final do intervalo. Lídia arruma seus livros e se prepara para entrar na sala da oitava série. Antes de abrir a porta da sala, o coração da professora acelera, mas ela tenta se acalmar. Convence a si mesma a entrar com um sorriso no rosto.
-Bom dia... – fala Lídia ao entrar.
Nesse momento, a professora se surpreende: todos os alunos estavam com as cadeiras de costas para o quadro negro, em um protesto sem causa. Lídia olha aquilo e fica sem entender.
-Pessoal. Vou precisar que virem as carteiras para cá. Não sei que aula vocês tiveram anteriormente, mas agora preciso que olhem para o quadro negro.
Os alunos continuam com as carteiras viradas. Lídia não entende aquilo.
-Pessoal, por favor, a aula é aqui agora.
-A gente não está a fim de assistir sua aula. – fala Carolina.
-Se não virarem, eu vou... vou ter que... que chamar a direção da escola.
-Chama... qualquer coisa, a gente muda de escola.
A professora, com lágrimas nos olhos e sem acreditar no que estava acontecendo, pacientemente dá aula para todas aquelas costas que se apresentavam à sua frente, sem qualquer outra reação. Apenas as paredes brancas com alguns cartazes de trabalho a olhavam.
No término do dia, a professora passa pelos corredores da escola cabisbaixa, pensando no que houve, querendo apenas sair dali. Seus passos rápidos e seu semblante de preocupação denunciavam isso.
Então, eis que a diretora, com as chaves na mão fazendo ruído, surge em seu caminho. Seu semblante frio e calmo, combinando perfeitamente com sua roupa executiva e meia calça de cor mais clara que sua tonalidade de pele, interrompe sua “fuga discreta”.
-Lídia!
-Pois não, senhora diretora.
-Tudo bem?
-Está.
-Tenho notado você estranha ultimamente.
-São problemas pessoais, mas não os deixo interferir em meu trabalho.
-Que bom! Emprego está difícil hoje não é? Não podemos vacilar...
-É verdade. Bom, vou indo. Até amanhã.
-Até.
Ao ver a professora indo, a diretora diz para si mesma:
-Fraca!
No estacionamento dos professores, a professora entra em seu humilde carro e resolve colocar sua fita K7 que gravou com uma única música várias vezes. Ela tinha se encantado com aquele som, que dava uma sensação nostálgica e profunda. A melodia a remetia a um tempo que não havia vivido devido a sua idade, mas a agradava:
-Tenho que passar no mercado ainda, não tem carne em casa. - dizia aos prantos, parecendo ignorar o fato, não fossem as lágrimas.
Enquanto cantarola a saudosa música chorando, seu celular toca.
-Alô?
-Alô? Quem ta falando?
-Você liga no celular de uma pessoa e pergunta quem está falando?
-Me desculpa, é a Sra. Marlene?
-Não, não é.
-Ah, quem está falando?
-De novo? Não é a Marlene.
-Moça, você está chorando?Posso te ajudar em algo?
-Não. Obrigada pela preocupação... Não estou em um momento bom...
-Olha, se precisar, pode me ligar. Meu número você já tem.
-Tá, obrigada. Até mais...
Lídia desliga o telefone e fica contente por uma voz masculina e desconhecida ter mostrado preocupação com ela. Pela primeira vez no dia, não se sentiu sozinha. Pensando no que ainda tinha que fazer, a professora segue com seu carro pela avenida W3 norte, onde os semáforos insistem em apresentar a incômoda luz vermelha sempre que ela se aproxima. Em um desses semáforos, ela se lembrou da estranha ligação e deu um singelo sorriso. Começou a cantar sua música com mais vontade.
A professora segue pela Via W3 Norte e entra no Eixo Monumental. Ela segue a via até o fim para poder alcançar a pista da Estrutural, também chamada de Estrada Parque Ceilândia, para poder ir para a Ceilândia, cidade-satélite onde mora.
Lídia só queria esquecer aquilo. Adorava lecionar, fazia porque gostava, sentia prazer em seu trabalho, não fossem esses contratempos que a faziam rever conceitos. Afinal de contas, o que está acontecendo com o mundo? O que está acontecendo com as pessoas? Onde estão as coisas simples e verdadeiras da vida? Então era isso? Só dinheiro e poder? Os sonhos foram abafados e, hoje em dia, o único sonho é ter status?
Seus pensamento são interrompidos quando, passando pela avenida Hélio Prates e chegando na cidade satélite de Ceilândia, ela avista um mercado.
-A carne!


Algumas horas se passam e a noite surge em Brasília. Surge fria e com o céu estrelado, céu esse incomparável com qualquer outro lugar do Brasil. A noite transforma o polêmico Setor Comercial Sul em paraíso para das damas da noite e os que procuram sexo alternativo.
Dentro do fétido e escuro setor, onde há restos de frutas e embalagens deixadas pelos camelôs que ali permanecem durante o dia, Khrysthyanne Andrielly aguarda seus clientes em seu ponto e pensa no que houve naquela madrugada de sexta-feira para sábado da semana passada. A dama da noite caminha com seu rebolado exagerado, sapatos enormes de plataforma brilhantes e roxos, poucas roupas e muitos adereços. Sem nenhuma preocupação, ela pensa:
-Claro que aquela bicha jamais iria vir atrás de mim! Ia me matar? Pra esposa dela ver sua cara estampada nas páginas policiais? Ou dar um bofe-escândalo aqui, o que seria o fim dele?
A movimentação na beira da avenida ia ficando mais longe conforme a travesti adentrava o Setor. De repente, a escuridão e o silêncio são quebrados por passos que não são os seus. Khrysthyanne Andrielly para e observa ao redor, atenta.
Por trás de uma pilastra, uma silhueta se apresenta em contraste com os postes que iluminavam do outro lado dos prédios. Era Carla, a travesti do quepe de policial e seios de fora. Ela anda lentamente em direção a Khrysthyanne Andrielly, como se não tivesse pressa em chegar. Seu semblante é obscuro, independente da escuridão que ali se apresentava, o que faz Khrysthyanne temer por uns instantes, mas agir naturalmente:
-Que susto, bicha! Quase me transformei em purpurina agora!
Carla não diz nada e, ao parar de frente com ela, a surpreende com um tapa no rosto, derrubando-a. O barulho ecoa, repetindo várias vezes no local.
-Quer dizer que a viadinha sem classe anda pegando o ricaço do Audi, né?
Khrysthyanne, ainda no chão, olha pra Carla:
-Desculpa meu amor. Prometo que na próxima encarnação eu vou nascer menos gostosa. Pode ficar com o viadinho do Rody pra você!
Nessa hora, Carla tira um punhal da bolsa de couro. Seu semblante não dá a menor pista de medo ou receio do que planeja fazer. Ela está segura e irada:
-Então, vamos saber agora, sua vagabunda barata! O Rody é só meu!
Carla avança para cima de sua rival e Khrysthyanne, ainda no chão, fecha os olhos. Um forte de barulho de pancada ecoa pelo setor. Ao abrir os olhos, a travesti nota que Carla está no chão desmaiada. Ela olha para frente e se assusta: é Valdemar que estava ali com um pedaço de madeira na mão! O mesmo Valdemar que teve o seu Vectra roubado por Khrysthyanne e Rody!
A travesti se levanta rapidamente e recua. Seu olhar brilha e entrega um pouco de medo, mas ela prossegue e sua voz é firme:
-O que você quer aqui? Você nocauteou ela!
-Vocês deixaram o meu carro intacto atrás do Estádio Mane Garrincha. Contatei a polícia e eles encontraram tudo em seu devido lugar, fora os pneus que eu furei com tiros. Por que levaram o carro se não iriam roubar?
-Eu fiz isso só porque não queria estragar o ponto das bicha! Agora, me deixa em paz! O que cê ta fazendo aqui?
-Faltou uma coisa! Vim buscar meu dinheiro, sua bandida!
Em outra situação, Khrysthyanne Andrielly jamais devolveria a grana; ela não era dessas que cedia tão fácil. Por várias vezes passou por momentos críticos e sempre reverteu a situação para si, levando vantagem, mas ao ver Carla no chão desacordada, arruma os cabelos, tenta limpar a lama da roupa e dos joelhos, tira o dinheiro na bolsa e entregar o dinheiro a Valdemar.
-A desgraçada vai comer minha bunda com sucrilhos... – sussurra Khrysthyanne ao pensar no dinheiro que está devendo pra cafetina da região.
Valdemar, desconfiado, pega o dinheiro em silêncio e sai. Sua imagem desaparece no escuro por trás das pilastras.
Khrysthyanne Andrielly se sente derrotada e arrependida. A travesti segue de volta à claridade, para a beira da pista, onde as outras damas da noite esperam seus clientes. Ela passa a ouvir somente os passos que dá, agora mais lentamente. As coisas ali naquele ponto não poderiam mais ser como antes, mas, enquanto isso, ela empina o nariz e pensa nos programas que irá fazer. De repente, seus pensamentos são interrompidos quando ela avista uma estranha sombra atrás. Ao olhar e tentar identificar quem era dessa vez, seus olhos se aterrorizam... Sim, é a cafetina da região! Ela se apresenta com roupas curtas e amarelas, contrastando com sua pele negra, uma arma na mão e jeito de quem não está pra brincadeira:
-Por que a artista principal está fugindo se o show está apenas começando?
-Va... Va...Vanessa! – engasga Khrysthyanne Andrielly.

(continua no próximo final de semana!)

*Na foto, tio Pablo e Pedro.

->Música que a professora Lídia gravou inúmeras vezes em sua fita K7:


Guilherme Lamounier - Será que eu pus um grilo na sua cabeça?

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