Capítulo 2 - Sintonia


Capítulo 2 – Sintonia

Naquela noite fria, enquanto alguns estudantes se apressavam pra entrar e outros para irem embora, havia muito movimento na entrada da faculdade de Pedro, que se localizava em uma superquadra da asa sul.
Pedro ainda olhava surpreso para dentro do carro. Nathan começa a empurrar o seu amigo para perto.
-Hum, quer que eu te apresente, né?
-Não! Não! Eu conheço ela.
-Conhece? Então por que não vai lá falar com ela?
Pedro tenta resistir, mas desiste quando Keysha os avista. Os dois chegam perto do carro e Nathan cumprimenta a sua galera. Ele apresenta Pedro para todos. Keysha parece conhece-lo de algum lugar, mas mesmo assim fica indiferente. Pedro fica um pouco sem graça pela indiferença e sente um aperto no coração. Ao voltar de seus pensamentos distantes, ele nota que Nathan o chama.
-Hã? Falou comigo?
-Sim, cara! Tá viajando? To perguntando se você quer ir pra boate com a gente.
-Não, obrigado. O professor já deve ter retornado. Tenho que voltar pra sala! Bom divertimento a todos! – fala Pedro ao disfarçar e olhar o seu celular.
Em seguida, Pedro dá as costas e volta correndo para dentro da faculdade. Seus passos eram longos e sua vontade era de sair logo da vista de Keysha. Seu coração o culpava por ele não ter aproveitado mais aquele momento...

Nathan entra no carro e comenta:
-Ah, meio nerd o meu amigo, mas é gente fina.
-Percebe-se... Jeito comportado... Eu me amarro mais em gente de atitude... Detesto o padrão das pessoas. – fala uma outra garota que estava no carro.
Keysha, que estava no banco de trás do carro, fica indiferente ao assunto e dá um espirro. Nathan observa aquilo e comenta:
-Ah, ele disse que te conhece, Keysha.
-Sério?
-É, mas não sei se ele lembra direito de onde te conheceu. Ficou um tempo paradão...
-Também tive essa impressão...
Nessa hora, o amigo que estava com eles resolve interromper a conversa:
-Chega de papo-furado vocês! Tenho uma coisa aqui muito massa...
E dentro do automóvel, em um estacionamento pouco iluminado devido à quantidade de verde que ali havia, Keysha observa, sem entusiasmo, o pó branco de delírio. Como um relâmpago, uma forte dor de cabeça a atinge. Olhando para seus amigos partilhando o pó, a jovem, sem graça, decide também deixar a realidade e, com um charme petulante e ofensivo, e não decepciona os amigos.
Os amigos de Keysha seguem então com o carro pelas quadras 900 da Asa Sul e procuram a entrada mais próxima para o Parque da Cidade. O vento gelado e seco da noite de Brasília bate em seu rosto durante o avanço da velocidade do veículo. Keysha reflete, não com tanta sobriedade agora. As fortes luzes que passavam como um flash a confundiam e seu pensamento vagava entre presente e futuro enquanto a noite solitária continuava lá fora. Ao adentrar o Parque, com suas vistosas árvores e com pouca movimentação, eles seguem para uma parte mais escura, um lugar abandonado onde as pessoas da noite se encontram para uma distração de seus dias, de suas vidas reais. Eles estacionam o carro em um lugar perto do antigo pedalinho, mas um pouco mais distante dos outros carros para que juntos possam delirar mais calmamente.


Enquanto isso, Jorge está fazendo hora-extra no banco público onde trabalha. Ele está ansioso e nervoso já que não soube dizer “não” ao seu chefe. Jorge nunca deveu horas para a empresa onde trabalha, mas de vez em quando, contra a sua vontade, fica até mais tarde para agradar às outras pessoas e fazer o serviço que elas deixaram incompleto.
A ansiedade de Jorge é tanta que ele decide acender um cigarro próximo a janela. O barulho e a temperatura do ar condicionado o incomodam. Com o corpo rente a parede a perna esquerda cruzada, lentamente Jorge espalha a fumaça da sua primeira tragada no ar e se distrai ao ver aquela fumaça fluir junto com a brisa e a luminosidade de Brasília. Mais relaxado, ele coloca os braços na janela e se inclina para ver os prédios do Setor Bancário Sul. O analista pleno acha toda aquela vista linda e solta um breve sorriso para a bela noite da Capital.
Jorge termina de fumar o cigarro e volta para o seu computador para fazer uma última listagem de clientes. Para esses clientes será oferecido um cartão internacional com vantagens. Jorge analisa a poupança de cada pessoa e monta uma lista. Faltam 5 minutos para ele ir embora e sua lista parou na letra R. Rodolfo Marques é o nome... Conta-poupança: vinte e cinco mil reais...
Jorge olha o nome e anota a quantia da poupança. Pelo seu nervosismo, em vez de ele clicar no botão “próximo” para seguir para a próxima pessoa, ele clica em “atualizar”. Algo então o surpreende... Rodolfo Marques... um milhão de reais! Jorge acha aquilo estranho e aperta o botão “atualizar” novamente. Confirmado: um milhão de reais... Mas onde ele anotou vinte e cinco mil reais? O bancário clica em “voltar” e vê o nome anterior: Rodolfo Lucas... oito mil reais... O celular de Jorge, quebrando o silêncio da sala vazia, desperta ao marcar 21 horas. O bancário começa a se arrumar para ir embora e guarda o fato para verificar posteriormente.


A noite avança e a professora Lídia para um pouco em um badalado bar na 109 sul. Ela estava precisando relaxar depois de um dia tenso dando aulas em um colégio particular na Asa Norte. No vistoso e bem freqüentado bar, a professora tenta esquecer como foi esse dia. A lembrança ainda está forte em sua mente...
Lídia estava dando aulas de português e explicando sobre orações subordinadas adverbiais. Era a última aula do dia no turno vespertino da 8ª série. De repente, o celular de uma aluna toca e faz um barulho tremendo ao emitir uma música de funk. A professora apenas olha séria e a aluna desconfia. Lídia tenta, em vão, se concentrar na aula e a aluna começa a falar ao celular e rir. Alguns alunos conversam baixinho, mas a voz da aluna é que se sobressai. Lídia resolve chamar a atenção da aluna:
-Carolina, você está atrapalhando a minha aula. Desliga esse celular, por gentileza.
Carolina fica sem graça e os alunos começam a caçoar dela. A aluna se irrita e responde a professora:
-Oxi, professora. Não reclama comigo porque o meu pai é quem paga o seu salário...
Ao ouvir aquilo, Lídia fica sem reação. A sala de aula, cheia e clara, agora some diante de seus olhos. Segundos depois, ela começa a se tremer e seus olhos enchem de lágrimas. O sinal bate e os alunos se arrumam feito loucos para ir embora. Lídia apaga o quadro lentamente e fica pensativa...
Após essa lembrança vir à tona, a professora olha para a lua e resolve sair do bar. Ao notar a professora saindo, o garçom chama sua atenção do balcão:
-Ei, moça! A senhora não pagou a conta!
Lídia olha para o garçom e em seguida nota todos os clientes do bar olhando para ela. A professora dá um sorriso sem graça e volta para pagar a conta. Ela abre a bolsa e não encontra dinheiro. Então, tira um cartão para pagar. Após algumas tentativas frustradas de tentar pagar a conta na função débito, o bar aceita que os nove reais gastos de cerveja sejam pagos na função crédito...
Lídia segue para o seu humilde carro e pega o trânsito no Eixão Sul. Sua casa ainda está longe, pois ela mora na Ceilândia.


Após cruzar a extensa e plana via EPIA, depois de sair do setor de motéis, Keith segue com o seu namorado, um homem de 45 anos de idade, para a boate no afamado e escondido setor de oficinas sul. A garota tem apenas 23 anos de idade e já fez muitas loucuras em sua vida. Também pudera! Sua estrutura familiar não é a das melhores, pois a sua mãe encontra-se internada em um hospício e ela não sabe do paradeiro de seu pai. Keith foi criada sob os olhares desatentos de sua avó materna e se entregou ao mundo desde pequena. Seu namorado é um rico fazendeiro de São Paulo e casado, mas vem aos finais de semana para Brasília se encontrar com a ninfeta.
Os dois seguem na BMW do coroa e passam pelas ruas mal iluminadas do setor de oficinas até chegar à boate. A primeira impressão que se tem é que o lugar é deserto à noite, mas à medida que se avança, nota-se muitos carros estacionados perto das boates. Esses lugares de dança ficam mais para dentro do escuro setor, com todas as lojas fechadas devido ao horário.
Keith e o coroa chegam e estacionam o carro. Keith já ia sair da BMW quando o coroa fala:
-Amor, tenho uma surpresinha pra você.
-O que foi agora, Naldo?
-Eu comprei uma sandália pra você.
-Nossa... que linda! Dá um beijinho...
Keith dá um selinho em Reginaldo e calça suas novas sandálias.
-Ai, adorei!
Os dois descem do carro e a garota joga suas antigas sandálias perto de uma árvore, desprezando-as, apesar de serem semi-novas.
A fila para entrar na boate não estava muito longa e logo Keith e Reginaldo puderam entrar. O coroa paga a entrada mais cara que dá direito a open bar. Keith fica abraçadinha com ele e aos mimos, mas lá no fundo, aquilo é só um momento passageiro, não é algo que a completa. Ela só aproveita aquela situação porque algo a completa momentaneamente: dinheiro.
Os dois finalmente entram na boate. As luzes de néon dançam pelo lugar e muitas pessoas exibem corpos sarados e suados. Muitos se entregam aos delírios da bebida e dançam loucamente. Outras pessoas ficam em pontos estratégicos da boate esperando serem convidadas para um programa fora dali. Novatos vão em grupos e ficam observando os outros se divertirem e também na esperança de conseguirem beijar alguém. Há também a dark room, uma sala onde tudo é escuridão e somente o desejo impera.
Keith e Reginaldo sobem as escadarias e vão para a área Vip da boate. Lá há um bar a disposição deles e muitas luzes enfeitando o cenário e desenhando a forma de um coqueiro. A luz azul contrastada com o verde florescente dá um tom surreal ao lugar. De repente, a música para e um grande barulho surge. As pessoas olham para o alto e seus olhos arregalam quando o teto da boate começa a abrir. Todos vão ao delírio e gritam muito. O DJ, que fica perto do palco, coloca um trance para as pessoas balançarem o esqueleto.
-Nossa, to adorando, amor!
-Eu só quero que você se divirta, meu brotinho! – fala Reginaldo ao pegar no queixo de Keith.
Os dois então pedem um copo de caipirosca e começam a se deliciar. De repente, Keith olha para o lado e vê um rosto conhecido: aqueles cabelos rosas inconfundíveis... era Keysha!
-Keysha!
Keith se apressa para falar com sua amiga. Keysha olha para o lado e se surpreende:
-Keith! Que massa você aqui!
As duas garotas se abraçam.
-O que cê ta fazendo aqui, piriguete? – pergunta Keysha.
-Ah, vim com o meu coroa ali... Fala como você ta? Quanto tempo!
-Eu só to curtindo mesmo. Agitando aí na night!
-Ah, ah, ah... você não mudou nada. Tá namorando?
-Bom... não...
Nesse momento, Keysha olha para baixo e nota que Erick e seus amigos chegaram na boate. Eles estão no meio da pista de dança. Keith observa o olhar de Keysha e também avista Erick.
-Ei, aquele ali não é o Erick?
-Você conhece ele?!
-Sim, a gente fumava junto... Não me diga que você tá a fim dele?
-Hã? O quê? Mas eu...
-Há, há, há... ta a fim dele! Viu como eu descubro as coisas no ar?
-Peraí, Keith...
-Eu vou lá falar com ele!
-Não! Não! Espera, Keith!
Keysha tenta impedir sua amiga, mas Keith corre para falar com Erick...


Enquanto isso, depois de ter voltado pra casa e ter tomado banho, Pedro se deita, mas fica pensativo. O rapaz mantém a luz do abajur acesa e nota sua estante de livros. Há vários livros do ensino fundamental e isso o remete ao passado:
-Keysha... a garota por quem eu era apaixonado na 8ª série...


(continua na próxima semana!)


*Na foto, Keysha e Pedro. Ao fundo, o centro de Brasília.

**Clique na caixa de música para escutar o que rolava no som do carro enquanto eles iam para o Parque da Cidade.

Legião urbana - Tempo perdido

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