Capítulo 3 - "Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira"



Capítulo 3 – “Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira”


Ainda era a mesma sexta-feira fria e deserta nas ruas de Brasília. O telefone toca na casa do senhor Francisco Marques, pai de Rody e morador do Lago Sul, um bairro nobre de Brasília. Era sua mãe, a dona Alicia Marques.
-Alô?
-Filho? Você tá bem?
-Quem tá falando? Mãe?
-Sou eu, sua mãe! Você tá bem?
-Estou, mãe! Por que a senhora está ligando a essa hora? Já é meia-noite!
-É que eu tive um pesadelo! Cadê o Rody?
-Mãe, ele tem uma vida independente! Nessas horas, deve estar dormindo tranqüilamente com a namorada!


Em outro canto da cidade, mais precisamente perto da Orla do Lago Paranoá, onde a noite é iluminada o suficiente para dar magia ao local, uma cena quente ali se apresenta: Khrysthyanne Andrielly, Rody e mais um desconhecido fazem um programa a três dentro de um Vectra. Aconteceu o seguinte: Rody e o outro homem, que se chama Valdemar, se interessaram simultaneamente pela travesti enquanto passavam pelo fétido Setor Comercial Sul à noite. Rody vinha no seu Audi e Valdemar vinha em seu Vectra. Ambos pararam Khrysthyanne e queriam sair com ela. A confusão só não foi maior porque a dama da noite aceitou sair com os dois, coisa que ela só topou fazer porque está sem grana e tem que quitar uma dívida com a cafetina da região. Para não haver confusão, todos seguiram dentro do Vectra de Valdemar. Rody deixou o seu Audi estacionado perto da guarita da polícia do Setor Comercial Sul, que fica perto dos bancos.
A noite era uma criança para os três. Rody e Valdemar se deliciavam com Khrysthyanne Andrielly. De repente, o celular de Valdemar toca. Era sua esposa. Ele então sai do carro com a camisa e os cabelos bagunçados e fala com sua esposa, que nem imagina a situação que se procede.
-Oi, amor. Estou com uns amigos...
Rody e Khrysthyanne sossegam um pouco. De repente, a travesti vê a carteira com cartões de crédito e dinheiro de Valdemar jogada em cima do painel do carro. Ela pega e abre. Rody nota aquilo:
-Quanta grana...
-É, eu vou logo pegar o dinheiro do programa, filho. Vou pegar e depois cobrar dele como se ele nunca tivesse me pagado!
-Cara, eu não resisto também. Tenho que pegar alguma coisa pra mim.
-Se liga, bicha. Você é cheia da grana! Daqui a pouco vai querer roubar o carro!
Rody olha para Khrysthyanne Andrielly e dá um sorriso.
Enquanto isso, Valdemar encerra a conversa com sua esposa:
-Tá bom! Tá bom! Não precisa reclamar! Já to ligando o carro! Quer ouvir o barulho? Quer ouvir?
Do lado de fora do carro, Valdemar segue para o seu veículo e nota Rody dando partida. Ele se surpreende e se assusta:
-Ei, espera!
Rody acelera o carro e começa a fugir. Khrysthyanne manda um beijo para seu cliente:
-Tchau, bilu! Um beijinho pra sua esposa!
Valdemar fica com cara de decepcionado e começa a chorar:
-Ai, meu Deus! Socorro! Socorro!
Ele começa a correr e, por sorte, um motoqueiro passa por ali perto.
-Eeei! Por favor, preciso de ajuda!


Enquanto isso, Khrysthyanne Andrielly e Rody riem à beça dentro do carro.
-Há, há, há, há... você viu como ficou a cara dele?
-Bicha, você é uma das minhas. Você não presta! Roubou o carro da maricona!
-Cara, tá demais, vou até acender um beck aqui!
-Cê tá dirigindo, viada! Cuidado para não bater o carro porque eu quero morrer velha e linda!
Rody não liga para o que Khrysthyanne falou e acende seu cigarro de maconha.
-Quer saber? Você é da hora. Eu deveria ter te observado antes.
-Estou encantada. – responde Khrysthyanne ironicamente e arrumando sua maquiagem com um kit que ela trouxe em sua bolsa.
-Quem sabe a gente não fica mais íntimo e não viaja junto?
-Cê tá louca? Tu não faz o meu tipo não, querida. Ainda vou arranjar um bofe lindo e ir pra Europa!
-Todas dizem o mesmo até experimentarem todo o meu charme...
-Prefiro que um raio caia nesse carro.
Nessa hora, uma bala atinge o retrovisor do Vectra no lado de Khrysthyanne.
-Aaaaaiii! Que isso?
Rody olha para trás e vê Valdemar pegando carona com um motoqueiro. Ele está armado.
-A bicha tá armada! Acelera essa droga!
Rody vai guiando o carro e alcança as superquadras de Brasília. Mais um tiro acerta o vidro traseiro do veículo.
-Aaaai! Socorrooo! – grita a travesti.
Valdemar mira bem o revólver e atira no pneu do carro. O Vectra começa a perder a velocidade e Rody fica desesperado. Valdemar e o motoqueiro alcançam o carro e ficam colados com a janela onde está Khrysthyanne Andrielly.
-Devolve o meu carro! – grita Valdemar.
-Ai! Faz alguma coisa! – se desespera Khrysthyanne.
-Vou fazer o quê? – fala Rody.
-Pelo jeito eu que vou ter que ser macho aqui! – fala a travesti.
Nesse momento, Valdemar tenta abrir a porta do lado do carona. Khrysthyanne Andrielly nota aquilo e tira o tamanco do seu pé. Ela começa a bater fortemente na mão de Valdemar. Ele acaba tendo um dedo quebrado. A travesti apela e lança seus dois tamancos. Na primeira tentativa, ela erra a cabeça do motoqueiro que dava carona para Valdemar. Na segunda, ela acerta a cabeça de Valdemar. Vendo que os dois na moto ainda os perseguiam, Khrysthyanne abre a porta do seu lado com força total e isso acaba derrubando a moto. Valdemar e o motoqueiro tombam na pista.
-Sua maluca! – fala Rody.
Khrysthyanne Andrielly e Rody respiram e sorriem aliviados. A travesti ainda dá dedo para Valdemar e some nas entrequadras de Brasília.


Nesse momento, na boate do Setor de Oficinas Sul, Keith desce as escadas da área vip e vai para a pista de dança. Ela tenta não perder Erick de vista e vai empurrando as pessoas no meio do caminho como se fosse a dona do pedaço. Keith avista o seu amigo e corre para lhe dar um abraço.
-E aí, seu doido! Quanto tempo!
-Você que sumiu, sua “vagaba”!
Keith olha para os lados e vê que mais pessoas acompanham Erick, dentre as quais estão duas garotas e um cara. Ela não cumprimenta os amigos e volta o seu olhar para os olhos de Erick.
-Você e seu amigo estão pegando essas duas piranhas aí, é?
-Não, ele é gay. Eu que estou pegando as duas.
-Há, há, há... fala sério! Venha que eu quero que você converse com uma amiga minha.
Keith sai puxando Erick e deixa os amigos dele sem graça. Ao tentar subir as escadas para a área vip, eles são barrados pelo segurança. Keith resolve fazer seu jogo de cintura:
-Olha, amigo, não tem problema nenhum ele subir com a gente porque a gente paga a entrada dele no final, tá? Anota aqui nesse cartão mal-feito que vocês dão na entrada da boate que o meu marido paga no final.
O segurança apenas se cala e os deixa passar. Keysha olha apreensiva para as escadas e vê Keith chegar com Erick. O rapaz toma um susto e fica sério quando vê a garota de cabelos rosa.
-É ela? – fala Erick um pouco desapontado.
-Sim! – fala Keith sorrindo.
Os dois chegam perto de Keysha e Keith tenta interceder por sua amiga:
-Pô, mó massa encontrar meus amigos aqui na festa! Ah, esse aqui é o Erick, Keysha!
-Eu já conheço ele, amiga. – fala Keysha, ao achar meio tosca aquela representação de Keith – Como vai, Erick?
-Beleza, e você? Está sempre aqui na boate.
-É. A galera sempre me convida pra vir e eu gosto do som. Me amarro em trance.
Keith olha que a conversa começa a fluir e fala:
-Ai, gente, eu deixei o Naldinho ali sozinho, tadinho... Vou fazer um pouquinho de companhia a ele. Daqui a pouco eu volto, ta?
Keith se distancia e Keysha volta o seu olhar para Erick.
-Você tá sozinho?
-Não, não. Eu vim com meus amigos.
Os dois se calam um pouco e ficam escutando a música da boate. Keysha se sente um pouco tímida e seus pensamentos a traem. Ela se lembra de que ser tímida não é uma atitude de uma garota como ela. Ela simplesmente veio para “causar”.
-Você... tá ficando com alguém? – pergunta a garota.
Erick ainda dança um pouco e vira o seu olhar para Keysha.
-Bom... acho que fiquei com umas cinco desde que estacionei o carro perto da boate...
O sorriso de Keysha murcha nessa hora.
Keith e Reginaldo chegam perto dos dois.
-Gente, eu e o Naldo vamos “causar” um pouco lá na pista, viu? Podem aproveitar o open bar sem problemas. O Naldo paga a entrada do Erick no final. Kisses!
Keysha olha os dois descerem as escadas da área vip e fica um pouco confusa e desapontada. Mas ela tinha que passar por cima de si mesma e demonstrar que não estava nem aí para o que Erick acabou de dizer.
A garota de cabelo rosa pega um copo de vodca no open bar e começa a dançar. Erick a observa e chega perto para cochichar em seu ouvido:
-Isso não significa que eu não possa ficar com você...
O coração de Keysha palpita e ela esquece a mágoa que teve ao ouvir que aquele cara interessante tinha ficado com cinco garotas. Os dois então se beijam.


O final de semana parece começar a passar rapidamente. É manhã de sábado e Pedro Henrique toma café junto com seus pais e sua irmã caçula. Eles moram em um apartamento nas quadras CNB, em Taguatinga Norte, cidade-satélite de Brasília. A morada não é muito grande, mas dá para eles viverem com comodidade e sossego. A mesa da sala de jantar estava farta, pois havia uvas, mamão, biscoitos, pão de queijo, pão francês, pão torrado, margarina, presunto, queijo, suco de caju, café e leite. Pedro Henrique saboreava um pão torrado enquanto observava seus pais conversarem. Naquela casa, era proibido ligar a televisão quando a família se reunia para comer. Todos deveriam apenas conversar.
Os pais de Pedro são donos de uma lanchonete perto do apartamento onde moram. A loja fica perpendicular à movimentada avenida Comercial Norte. Pedro passa margarina em seu pão torrado e comenta:
-Puxa... ando estressado ultimamente. Preciso cuidar um pouco de mim.
A mãe de Pedro termina de tomar café e fala:
-São seus estudos, filho. Dedique-se mais um pouco. As férias de julho já estão chegando.
-Não é disso que falo, mamãe. A minha vida tem se resumido a ajudá-los a gerenciar a lanchonete, a ir para a faculdade à noite e a fazer trabalhos voluntários no orfanato nos finais de semana. Não estou tendo tempo pra mim.
-Esses sacrifícios são necessários, Pedro. Você não pode parar de estudar. Tem que cuidar do seu futuro. – fala o pai de Pedro.
-Eu sei... É que eu... é que eu... queria sair mais com os amigos. Queria me divertir como eles se divertem.
Os pais de Pedro se olham e continuam a escutar seu filho:
-Alguns amigos de faculdade saem de vez em quando. Outro dia eles me chamaram para ir pra boate.
-Esses seus amigos devem ser uns desinteressados! Devem matar aula para ir beber ou fazer coisas erradas! Você tem que se afastar deles! – fala sua mãe.
Pedro se sente um pouco triste e confuso por dentro. Ele não pode desagradar seus pais e muito menos ir contra a opinião deles. Sua felicidade é abafada pelo o que determinam para ele, inclusive com horários para cumprir. O rapaz de 24 anos deixa a mesa meio entristecido. Seu pai observa aquilo e sua mãe comenta:
-Não foi uma boa ideia o Pedro cursar uma faculdade lá no Plano Piloto. Ele poderia transferir aqui pra Taguatinga. Não tem necessidade de perder tempo se deslocando pra lá.
-Ah, querida, eu achei legal ele estudar lá onde o meu irmão dá aulas. Os dois vão se encontrar segunda-feira de manhã para o Pedro pegar umas aulinhas extras de Cálculo I.
A irmãzinha de Pedro apenas observa um pouco da conversa e depois se retira.


Pedro se tranca em seu quarto e resolve passar o sábado e domingo lá dentro. As horas intermináveis dentro do cômodo só serviram para que ele ficasse o tempo todo no MSN e baixando seriados na internet... O rapaz não se interessou em fazer seu trabalho voluntário no orfanato nesse final de semana.
Finalmente a segunda-feira chega. Pedro se levanta e se arruma depressa, pois está atrasado. Os minutos passam e até o elevador do prédio parece demorar. Pedro sai do condomínio e corre para pegar o lotado ônibus via W3 Sul na avenida Comercial Norte.
O ônibus segue em um trânsito lento pela Comercial Norte e pelo centro de Taguatinga. Como é o primeiro dia da semana, o veículo também pega um engarrafamento na EPTG, via que liga Taguatinga ao Plano Piloto – Brasília, e aquilo deixa Pedro angustiado. Ele marcou de se encontrar com o seu tio na faculdade por volta das oito horas. Já eram quinze para as oito! A viagem toda parecia interminável: SIG, Eixo Monumental, Torre de TV, início da W3 Sul, shopping Pátio Brasil...
Pedro já comemorava quando finalmente chegou na parada para seguir para a faculdade. Ao descer do ônibus, ele olha para os lados e vai seguindo o seu caminho. De repente, algo congela a sua alma... coincidência do destino ou não, Keysha estava sentada no banco da parada de concreto. Pedro fica sem respiração e seu coração palpita. Ele centra o seu olhar no belo rosto da garota. Keysha, estando distraída, retoma a sua atenção e vê Pedro. Os dois cruzam seus olhares, embora não estejam sentindo a mesma coisa. Pedro só sentia emoção e arrepio; Keysha parecia indiferente e recuada. Ela então se lembra daquele dia no carro e, para a imensa alegria de Pedro, fala:
-Oi.
Pedro solta o ar de emoção e, com um sorriso, responde:
-Oi...


(Continua no próximo final de semana!)

*Na foto, Rody e Khrysthyanne Andrielly.

**Música que Keysha e Erick escutaram pouco antes de se beijarem:

R.I.O - Shine On - R.I.O - Shine On

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