Capítulo 5 – A realidade bate em sua porta


Capítulo 5 – A realidade bate em sua porta

Brasília é uma capital tão desenvolvida como qualquer outra, mas às vezes parece tão pequena que algumas notícias se tornam tão facilmente populares. Pode-se citar, como exemplo, essa recente notícia que saiu nos telejornais e foi o assunto do dia nos ônibus, nas rodas de conversa e em muito mais lugares:


Duas travestis foram encontradas amarradas no Setor Comercial Sul hoje pela manhã. Elas, que atendem pelo nome de Vanessa e Carla, estavam amarradas em uma pilastra do bloco "B". Um funcionário de uma loja próxima as avistou e preferiu acionar a Polícia Militar, visto que Vanessa se encontrava com uma arma na cintura.
Ao serem desamarradas, as travestis alegaram que foram abordadas quando atravessavam o setor, por volta das três e meia da manhã, sendo rendidas por um rapaz pardo, com mais ou menos 1,60m de altura, calça jeans folgada, camisa branca e boné. O mesmo levava consigo uma corda com a qual amarrou as duas. Vanessa afirmou que a arma pertencia ao meliante e que ele colocou o objeto por dentro de sua saia para se livrar da prova do crime. Afirmou também que o mesmo se esqueceu de levar o dinheiro que as duas carregavam devido ao nervosismo do momento. Carla possuía uma escoriação na parte da nuca e alguns arranhões no rosto.
A policia desconfia de acerto de contas, pois Vanessa é suspeita de comandar um ponto de prostituição daquele mesmo setor. Sem provas concretas, a travesti Carla foi liberada na madrugada, e Vanessa permanece na delegacia apenas para averiguação da procedência da arma ilegal que estava em seu "poder".
Ao ser questionada sobre o verdadeiro ocorrido, Vanessa afirma: "O que aconteceu foi só isso, mas a justiça vai ser feita, pode acreditar!" Mais notícias nos próximos boletins.


Khrysthyanne Andrielly desliga a TV e sorri um sorriso debochado, mas com um fundo de preocupação. Ela senta-se em sua cama e diz pra si mesma:
-Isso mesmo, benzinho... Entrega a mamãe que a mamãe te entrega! Se bem que to ferrada... Se essa bicha me pega...
A casa de Khrysthyanne mais parece um camarim desorganizado, com objetos de adorno espalhados por todos os lados: brincos, estojo de maquiagem, sapatos e peças de roupas coloridas jogados no chão enchem a sala. Ela caminha por um estreito e sujo corredor até parar em seu quarto, tão cheio de informação quanto a sala. Após ligar o rádio e se distrair um pouco com a música, a dama da noite olha para o movimento lá embaixo. Tudo parece tão normal: pessoas passando, o sinal fecha, os carros passam, as pessoas passam de novo.
-Eu não prestava pra essa vida monótona. - pensa.
Não é nada fácil morar em uma sobreloja, ainda mais na 714 Norte, e pior ainda tendo uma vida noturna. Khrysthyanne Andrielly e sua amiga Alessandra, uma garota de programa, passam todas as manhãs reclamando de tudo, das buzinas, do movimento, pois naquela quadra movimentada tudo incomoda. Mas nesse dia não. Ela permaneceu calada apenas olhando da janela.
-Tenho que mudar de ponto! A Vanessa me mata se me ver de novo! – continuou pensando.
Khrysthyanne vai pra sala e a ansiedade a faz ligar novamente a TV. O telejornal anuncia novas notícias sobre o caso das travestis:
-A travesti Vanessa, que foi encontrada amarrada em uma pilastra no Setor Comercial Sul, foi liberada após prestar queixa sobre o suposto assalto. Não houve provas de que a arma que estava em seu poder era realmente dela. A arma foi apreendida e a travesti deixou a delegacia por volta das 11 horas.


Na saída da delegacia, Vanessa ainda parecia preocupada e nervosa. Seus saltos ecoavam em todo ambiente, em passos rápidos, como se a qualquer segundo alguém pudesse detê-la. Do lado de fora da delegacia, Carla a esperava. O semblante de Vanessa muda e a preocupação se transforma em ódio:
-Aquela vagabunda vai saber como se come capim pela raiz, ah se vai!


Chega sexta-feira e Keysha está a mil. Em frente ao espelho do seu quarto, ela experimenta várias roupas e as joga em cima da cama, desta vez de porta fechada, pois sempre que sua mãe vê isso, ela reclama e a garota se irrita.
Para Keysha, a noite é sempre uma surpresa, como se algo maravilhoso e inesperado pudesse acontecer a qualquer momento. Às vezes ela pensa que essa vida não leva a nada, mas logo o fim de semana chega e a garota de cabelos rosa não consegue resistir à tentação de se mostrar para o mundo. O seu “uniforme para a noite” é bem provocante, com alguns decotes, saia curta e umas botas pretas na altura do joelho, coladas na perna. Enquanto procura algum defeito em sua roupa ou no seu visual, Keysha pensa em Erick e na reação que ele terá quando a vir. Ela então sorri.
Algum tempo depois, soa um barulho de buzina na frente da casa de Keysha. Sua mãe grita:
-Keyla, é sua amiga!
-Já vou!
A garota termina de passar o lápis preto no olho e sai, deixando a bagunça no quarto. Sua mãe entra e vê aquilo:
-Quantas vezes eu preciso te pedir pra arrumar isso, Keyla? Eu passo o dia na rua e quando chego ainda sou empregada?
-Mãe, olha só, quando eu chegar arrumo tudo, ok?
Ela vai saindo enquanto ouve sua mãe reclamar em alto som todos os lamentos de sua vida e tudo que passa. Quando abre a porta da sala para sair, Keysha fala:
-Beijo mãe!Até mais tarde!
Na frente da casa, na quadra 703 sul, Keith espera a amiga em seu Peugeot 207 vermelho. Ela observa cada passo da amiga em direção ao carro. Keysha abre a porta e entra:
-Iaê, piriguete!!! Só de boa agora que o Naldo tá em São Paulo, né?
-É, esse fim de semana ele não veio, mas também ele ta muito chato, nossa!
-Ah, é?
-E, nesse fim de semana, eu tava mesmo pensando em sair sem um saco murcho a tira colo.
-Há, há, há... Então vamos, amiga!
Keith segue com o carro pela avenida W3 Sul, vazia devido ao horário. Mesmo sem trânsito, as duas andam lentamente por causa dos semáforos, que insistem em fechar a cada quadra. As árvores que ficam no meio da avenida balançam suavemente e exalam um suave cheiro. Keysha fica impaciente com toda aquela cena e diz:
-Você deveria ter ido pelo Eixo, que não tem semáforo.
-Bingo! Como você é esperta! Estamos no final da W3, linda. Devia ter dado essa ideia umas doze quadras atrás!
As duas se olham seriamente e em seguida riem.
-E o Erick, Keysha? Você ta apaixonada, né?
-Que nada! É só curtição mesmo... O que eu ia querer com um moleque daqueles? – fala Keysha ao acender um cigarro.
-Moleque, né? Sei...
-Além do mais ele é muito mulherengo, não vai deixar essa vida nunca!
-Honey, uma mulher tem que usar as armas que tem. Se você deixar essas armas escondidas, ou tiver medo de usar, vai ser traída e pobre para sempre!
Keysha permanece calada, mas seu pensamento emanava veneno:
-Olha só quem fala! Se fosse tão poderosa, não seria a amante que o Naldo nunca vai apresentar pra ninguém! Por que não dizer uma “puta de luxo”?
Enquanto pensa, Keysha observa o setor de hospitais e vê a última parada da avenida com umas duas pessoas no escuro aguardando suas conduções. Ela também pensa em Erick e no que poderia ter acontecido se tivessem se conhecido em outra ocasião, em um clima mais light do que essas boates. Mas talvez ele fizesse como Rody: talvez deixasse a namorada sozinha em casa nos finais de semana, ou talvez não.
Keith interrompe os pensamentos da amiga:
-Entendeu, garotinha?
Ela piscou o olho e Keysha sorriu.
Na boate, a multidão enlouquecida pulava enquanto as batidas da música ficavam mais frenéticas. O ambiente quente e lotado animava o público e todos pareciam felizes e comunicativos, seja pela bebida, seja pelo clima. Pessoas se beijavam. Pessoas se azaravam com conversas ao pé do ouvido. Alguns tentavam ser mais cafajestes, mas poucos se saíam bem sucedidos.
Keysha, como sempre, quebra o fluxo da fila, causando olhares indignados, e fala com o segurança, que a beija no rosto e a deixa entrar com a amiga Keith.
Dentro da boate, as duas avistam todo o ambiente. De mãos dadas, Keith e Keysha seguem empurrando a multidão, que parece não se importar, até que Keysha, que vai na frente, vira pra amiga e diz:
-Olha os meninos lá!
No canto da boate, Rody conversa com uma loira, enquanto Erick está encostado na parede olhando o ambiente. Keysha se aproxima e cumprimenta Rody com um beijo no rosto. Keith apenas aperta a mão do rapaz.
Ao chegar perto de Erick, Keysha nota que ele não está normal. Ela pega em seu rosto e fica decepcionada com o transe que o rapaz está passando.
-Ow! Ele ta doidão! – fala Rody.
Keysha olha para Rody e diz:
-Mas já? A noite mal começou!
-Ele estava em um churrasco de tarde... já veio de lá mamado!
Keysha sente-se um pouco impotente. Keith pega em seu braço e fala:
-Vamos pra outro lugar!
-Não, Keith, calma aí!
Ela observa o amado novamente, com o olhar vago e sem brilho:
-Erick, vamos lavar esse rosto agora!
Atravessando a multidão, Keysha vai guiando Erick e evita ao máximo esbarrar nas pessoas. Ao chegar ao banheiro, a garota de cabelos rosas pede para que um outro rapaz o ajude a lavar o rosto. Erick, cambaleando, sussurrava frases estranhas:
-A culpa é dele! Cara otário!
Keysha não conseguia distinguir, pois o som estava alto e ela estava um pouco longe, perto da porta do banheiro. Após alguns minutos, Erick sai com o rosto molhado e abraça Keysha. Ela o acolhe calorosamente. Na verdade, não era bem um abraço; ela o estava carregando praticamente.
Em outro canto, Rody olha para o teto da boate e se distrai. A loira com que ele estava ficando no início da festa parece ter sumido ou ter encontrado um outro rapaz para ficar. Ele parece não ligar para aquilo e começa a passear no meio das pessoas. Rody se encontra com Keith e a observa dançar. Aquela cena parecia despertar desejo nele. Rody dá um sorriso e tenta usar o seu poder de sedução em sua amiga:
-Ei, Keith, será que você...
-Eta! Cadê a Keysha? Vamo procurar, Rody!
Keith puxa Rody com força e o rapaz de cabelos loiros sujos não consegue completar sua frase. Os dois andam alguns passos e veem Erick encostado na parede junto com Keysha.
-Tá tudo bem por aí? – pergunta Keith.
-Só faltava essa, né, Keith? Eu ficar de babá em plena boate!
Keith olha para a amiga e tira Erick de seu poder. Erick já ia cair no chão quando Rody o segura.
-Ei, vão me deixar aqui com ele?
-Se vira que eu já to puta de raiva! - responde Keith grosseiramente.
As duas amigas sequer olham para trás e vão para uma área aberta, no primeiro andar.
Na área aberta, algumas pessoas conversam alto e riem em grupos. Enquanto seguem de mãos dadas para um canto, Keith e Keysha despertam alguns olhares mais maliciosos.
-Qual é o seu problema, Keysha? Por que ficou segurando aquele babaca?
-Eu não sei...
-Olha, se você quer continuar assim, tudo bem, mas vou dizer uma coisa: essa não é a Keysha que eu conheço! Que ridículo!
-Olha, Keith...
-Olha você! Você agora vai descer essas escadas e vamo mandar ver nessa pista! Vamos pegar geral e que o Erick se dane! Você mesma disse que não namoraria com ele! Seja mulher e honre as coisas que diz.
Com uma ira poucas vezes demonstrada, Keith vai descendo as escadas puxando a amiga. As duas passam por Rody e Erick, que dorme encostado na parede. Rody grita:
-Bravinha que só! Que medinha dela! Garota TPM!
Keith se volta pra trás e encara Rody. O rapaz fica sem reação. Ela volta e, quando chega em sua frente, estende o dedo médio diante de seu nariz.
-Babaca! – fala a furiosa garota.
Keith segue com Keysha ao bar para comprarem bebida. As duas se embebedam e, algum tempo depois, saem frenéticas para a pista. Seus corpos se mexem sensualmente e não demora muito a chegar dois rapazes, que as abordam. As duas sorriem, porém, é perceptível até para uma pessoa como Rody sacar que o sorriso de Keysha não é tão sincero. Ao sentir um pouco de constrangimento com a situação, a garota de cabelos rosas planta uma semente de revolta em seu coração e, com um gole de Vodca, encerra o assunto em sua mente dançando com sua amiga e com os dois rapazes.


Já é madrugada e os amigos de Jorge deixam sua casa, onde foram recebidos para um singelo churrasco. Com a casa vazia, ele observa toda a bagunça que foi deixada e se sente como tivesse ido embora também. Tal como a casa, o seu mundo esvaziava. Sempre foi assim. Quando os amigos chegam, é uma farra; quando vão embora, é terrível!
Jorge abaixa o som, recolhe tudo que foi deixado na sala e segue para o seu quarto. Ele ainda consegue ouvir algumas risadas que foram dadas uns minutos atrás e os assuntos agradáveis.
Jorge mora na cidade satélite do Gama, a 32 km do Plano Piloto. Apesar da distância, seus amigos sempre procuram visitá-lo e dizem que o ambiente de sua casa é hospitaleiro e agradável. Ele, que só vive de trabalho, se sente a melhor das pessoas ao receber pessoas queridas em seu lar, mas se sente um nada quando se vão. E elas sempre se vão.
O bancário caminha em direção a seu quarto, liga o computador e sai para tomar uma ducha. No banho, seu pensamento divaga com mais força e ele não só lembra do encontro que teve com os amigos, mas também de outros momentos agradáveis em sua vida.
Ao retornar para o quarto, ele entra em uma sala de bate-papo. Seu nick “Último Romântico” entrega suas reais intenções na página. Ele cumprimenta os nicks que achou interessante, mas, por enquanto, ninguém responde. Após um tempo visitando outras páginas, ele volta ao bate-papo e nota que alguém quer conversar:
-Hum... “Professora Carente”? Gostei no nick...


>>>(continua na próxima semana!)<<<


*Na foto, as travestis Carla (com fantasia de policial) e Vanessa (a cafetina da região, de vestido amarelo) amarradas misteriosamente. Foto de capa de jornal!
Clique na foto para vê-la maior.

*Música que tocou na boate quando Keysha, Keith, Erick e Rody se encontraram:

Ian Carey - Keep On Rising (Radio Mix)

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