Capítulo 10 - Reflexões, realidade e afins


Capítulo 10 - Reflexões, realidade e afins


Durou em média dois minutos do momento em que seus olhos se encheram de lágrimas até o choro sentido. Vendo aquele vídeo, Luciana se compadeceu com uma situação que não tinha visto com tanta veracidade e sentimento antes. No refrão, as crianças africanas cantavam com muito sentimento. Nesse momento, Luciana pediu perdão a Deus por todas as vezes que reclamou da vida. Tudo parecia tão pequeno diante daquelas imagens. Sua atenção se dividia entre a emoção do vídeo e o medo de alguém adentrar a sala de informática e vê-la chorando. Doía ver aquelas pessoas, que possuíam a mesma cor de pele sua, morrendo de fome, catando comidas no chão, chorando com seus filhos magros pendurados em seus corpos.
Pedro entra na sala e avista a cena. Para por alguns instantes e vai em direção à moça:
-Ei, moça, tá tudo bem?
Luciana faz sinal e Pedro se senta. Sem dizer nada, ela volta o vídeo e o rapaz assiste. A cada imagem seus olhos ficam mais atentos e mais úmidos. Nesse momento, ele pensa em Keysha e no quanto é egoísta com todo esse sentimento. Não entende nada sobre dor, sobre problemas. E sentiu vergonha por ter saúde e por viver nesse mundo tão injusto. Mas foi no momento em que o vocalista cantou “Heaven’s cry, Jesus cry” que o rapaz não se conteve. Luciana o abraçou e, ao se olharem, souberam que, por mais singelo que fosse aquele momento, seria inesquecível e que dali algo maravilhoso nasceria.
Passado o momento de lágrimas, com a cabeça no colo da moça, Pedro, com voz chorosa, diz:
-Qual é seu nome?
-Luciana, e o seu?
-Pedro.
Silêncio.
Passados alguns minutos os dois se levantam e saem juntos da sala. Ainda nos corredores, discutem sobre a situação social e política da África, sobre o massacre de Ruanda, e sobre várias outras coisas que envolvem o continente.
-Tenho uma amiga que só reclama da vida, de tudo. Nada tá bom pra ela. Ela deveria ver isso.
-Luciana, as pessoas têm essa mania. Só dão valor ao que não tem.
-Temos que rever nossos conceitos né?
-É.
-Pedro, foi um prazer enorme te conhecer.
-O prazer foi meu.
Os dois trocam beijos no rosto, telefone e saem para suas salas mais aliviados e felizes por terem se conhecido. Pedro viu em Luciana uma grande amiga em potencial. Luciana não tinha pensado nada até o momento. As fotos e a música ainda ocupavam todo o espaço de sua mente.
Luciana é uma garota de classe média-baixa, que reside na cidade satélite de Samambaia. Conheceu o trabalho desde cedo, dividia sua tarefas com muito esforço e sempre alcançou seus objetivos, mesmo conciliando trabalho com estudo. Sempre fora assim, desde que se entende por gente. Tem cinco irmãos, quatro homens e uma mulher. Seus irmãos não pensam em progredir profissionalmente e não ajudam em casa, então ela sempre soube o que é ter responsabilidade. Sendo solidária à mãe, apesar de cobrar acirradamente uma postura mais protetora da parte dos irmãos, sempre segurou as rédeas enquanto esperava esse milagre acontecer. Mas até mesmo essas dificuldades pareciam não ser nada diante do que havia visto a pouco.
Pedro ainda pensava no acontecimento interessante, porém, dividia suas atenções entre os pensamentos e a aula. Fora isso ainda havia o fato que se passou na orla do lago Paranoá, no qual, por um lado positivo, Nathan havia se aproximado mais do rapaz, porém ele sabia que ia ter que encarar Erick, Rody e... Keysha! Como isso o torturava! Como pôde colocar tudo a perder? Uma pequena parte dele sentia alívio, por ter sido espontâneo, mesmo bêbado. Mas a maior parte sentia vergonha. E medo. Medo daqueles cabelos rosa e da áurea que fez a Keysha se apossar da doce Keila. Seus pensamentos agora iam para Luciana. E para a África. voltavam para a Orla. E assim foi até que a viagem foi interrompida pelo professor:
-Então, prova na próxima aula.
-Putz! - Pensou.


Já eram dez da noite quando as últimas lojas da quadra 407 da Asa Norte fechavam suas portas. Porém o trânsito ainda estava frenético. Alguns ambulantes se encontravam na fria noite, com seus casacos e toucas, atendendo os clientes e tentando se aquecer com as mãos no bolso. Havia ali um quiosque que vendia churrasquinhos, onde alguns moradores e funcionários de empresas ao redor iam acompanhados e seguindo aquele cheiro, que parecia irresistível. Eles conversavam entre si sobre o clima e outras coisas. Alguns observavam a conversa dos outros e a noite seguia. Keith, de seu quarto, observava toda a movimentação, enquanto pouco se importava com o que passava na TV, que se encontrava ligada. Observando coisas simples que as pessoas faziam, seu pensamento vagava sobre o que é e sobre o que poderia ter sido. Por um momento, imaginou seu pai por perto, enquanto via um homem com seu bebê passando na avenida. Quem seria ele? O que teria acontecido? O que seria verdade em toda a sua história e o que não seria? Sua mãe, que agora se encontra internada em um hospício não muito longe dali poderia ter lhe faltado com a verdade durante seus relatos. Ou talvez não. Ou talvez ela sempre fora “louca”. Ou talvez tenha enlouquecido com as pressões da vida. Tudo parecia muito incerto e impossível. Chegou por um segundo a pensar em desistir da vida que leva e tentar ser ela mesma. Simples.
-Devo estar ficando louca!
Reginaldo era seu namorado. Mas o que na verdade Keith buscava naquele senhor, de barba branca e com cabelos ralos era uma proteção de pai. Uma proteção que jamais conhecera. E por não ter tido presença masculina em sua criação, não confiava em homens. E admirava a força das mulheres. Falando em mulheres, que incógnita! Desde que sua mãe foi internada, a moça foi visitá-la umas três vezes. A última tem mais de dois anos. Então, ao pensar nisso, via as mulheres com força e fraqueza ao mesmo tempo. Apreciava o fato de dominar os homens justamente por não se deixar envolver por completo. Quantos já haviam chorado ao seus pés?
Tirando o esmalte da unha e ainda recostada na janela, a moça pensou em todos os homens que amou em silêncio, e em todas as mulheres também. Todas as vezes que esperou e nada aconteceu. E nas vezes em que não esperou e algo mudou sua vida. Ela desvia a atenção da unha e consegue ver seu carro, um presente de Reginaldo, no estacionamento.
-Ai, chega de pensar bobagens!
Deitou-se.


-Como a água de Brasília é diferente! - pensou Anderson enquanto dava um gole em frente à geladeira, no meio da noite. Os rapazes que dividiam o apartamento com ele roncavam quebrando o silêncio do local. Conseguia ouvir também algumas pessoas transitando pelos corredores do prédio. Se deitou e refez toda a cena da festa em sua mente. Cogitando todas as possibilidades e até mesmo a mais corajosa: sendo bem direto com Jéssica. Mas o que tem foi o que aconteceu de fato. E não sabia qual reação a garota teria da próxima vez que o visse. Esperava que ela fosse compreensiva e continuasse sendo cortês com ele. Mas também havia a possibilidade de ser ignorado pela moça. Recém-chegado na cidade, Anderson tinha receio da aceitação das pessoas, visto que não sabia como era o comportamento típico das pessoas dali. E quanto mais amigos fizesse, mais poderia compreender tudo, uma vez que tem uma personalidade extrovertida, porém sempre cautelosa. Mas a moça tinha sido tão bacana e receptiva com ele. Isso o deixava com dor na consciência, que só passou quando um pensamento válido tomou conta dessa questão: justamente por ela ter sido tão bacana, ele deveria, mais do que nunca, agir com sinceridade com ela.
-Arre égua! Que povo diferente! - pensou, enquanto ouvia o ronco dos amigos.
O rapaz pensou nos costumes de sua região natal, dos amigos que conquistou, sua família. Relembrou momentos que se passaram, comparando a atitude de Jéssica com prováveis atitudes de outras pessoas que conhecia. Começou a cogitar milhões de situações e pessoas no mesmo ambiente, revisitou os locais de Brasília em sua mente, até que adormeceu.


Para muitos, pouco tempo se passou, mas para Khrysthyanne Andrielly durou muito tempo até que se estabeleceu no ponto onde se encontrava agora. Foram muitos dias forçando a barra com Rebecca e Jennifer, para conquistar a amizade delas e dividir a parada de ônibus na 714 norte. Até isso acontecer ficava perambulando sem um ponto fixo. Isso faz com que os clientes sejam mais escassos. Com isso o dinheiro vai faltando e as contas tirando cada vez mais seu sono. Mas todo esse pensamento saiu de sua cabeça quando, sentada na parada, a travesti admirou sua bota preta de couro, que ia até o meio da coxa, combinando perfeitamente com o micro vestido, também de couro preto. Ela se sentia confiante com o traje e não se importa com o frio e os fortes e gélidos ventos que assoviam em seus ouvidos. As árvores da avenida balançavam seus galhos freneticamente e exalavam um cheiro agradável, que tomava conta da avenida. Khrysthyanne Andrielly emanava confiança e petulância para os carros que passavam, jogando beijos e fazendo poses. Por um momento ela se olha no espelho para retocar a maquiagem:
-Gostosa! - disse para si mesma.
Enquanto retocava o batom com muita concentração, um carro se aproximou com os faróis altos e em baixa velocidade. Khrysthyanne se aproxima, e ao abaixar na janela, se surpreende com o motorista:
-Eu sabia que ia te achar de novo!
Rody dá um sorriso sacana e a travesti se anima:
-Quem é vivo sempre aparece, né, bicha?
-E aí, ainda tá o mesmo preço?
-Pra você é mais caro, amor, porque tem muita emoção e risco!
-É assim que você gosta que eu saiba!
-Já disse que quero morrer velha e linda!
-Linda você já é...
-Colega, eu não estou nessa parada esperando meu grande amor, vamos ao que interessa?
-Entra aí.
Khrysthyanne faz um ar de superior e adentra o carro, que segue a avenida W3 Norte rumo à rodoviária. Após alguns minutos, Rody quebra o silêncio do carro:
-Tava pensando em um programinha a três, você tá afim?
-Querida, aí a grana vai ter que ser dobrada! Se for com aquela bicha motoqueira da última vez, eu triplico o preço!
-Relaxa, vai ser legal.
Rody pega na coxa de Khrysthyanne e aperta com sofreguidão. O rapaz está animado com o fato de estar com a travesti e mais uma pessoa:
-Essa noite promete!
-Estou tão empolgada... - fala a travesti com desinteresse.
Khrysthyanne Andrielly agia como se pensasse: “que horas isso vai terminar?”. Porém essa atitude logo mudou quando Rody faz o retorno e desce para o Setor comercial Sul. Ele aumenta os faróis e adentra o setor. Khrysthyanne fica imóvel por alguns segundos sem acreditar no que está acontecendo, porém é preciso alguma atitude rápida, pois ao avistar Carla, a travesti do quepe de policial, Rody diminui a velocidade.
-Fodeu! - sussurra a travesti.
Vendo que a velocidade do carro está diminuindo e que Carla se aproxima entre os altos faróis do carro, a travesti tira um canivete da bolsa e encosta da barriga do playboy:
-Ou você arranca com essa lata velha daqui, ou vai virar purpurina!


>>>> (continua na próxima semana!!!) <<<<

*Na imagem, Keith em uma das entrequadras da Asa Norte!

**Música que tocou profundamente Pedro e Luciana:

Wyclef Jean - A Million Voices

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